Mãe Iria
- não me morras sem que te veja
peço se calhar muito e peço no entanto apenas isto, caramba peço apenas isto, eu hoje sou criança, faço anos, não sei quantos anos, isso agora não me interessa, o tempo foge-me a cada minuto e eu conto cada um dos que faltam até chegar perto de ti
- não me morras sem que te veja
quero agarrar a tua mão, quero sentir a tua pele tão gasta e no entanto tão bela, quero olhar-te nos olhos, ouvir a tua voz, quero sorrir-te antes de te chorar, é tudo o que te peço, não te esqueças, hoje sou criança outra vez e por isso o pai vai de burro até cascais vender o leite fresco enquanto tu cuidas da casa e cuidas de nós e cuidas da taberna e cuidas do que for preciso, é assim a vida nestes dias, faltam muitos anos para o futuro e no entanto o futuro aqui, agora, a querer-nos separar sem que um adeus, um até sempre, um olhar que eu possa guardar como o melhor de todos os presentes
- não me morras sem que te veja
deixa-me só acabar de dobrar estas roupas escuras, deixa-me só correr para o avião e cruzar meio mundo, eu prometo que não demoro, mãe, eu prometo que não demoro, são só mais umas horas, não muitas, por favor, deixa-me só encher a minha mala não de roupas escuras, mas da coragem que julgava não ter, deixa-me pensar nas palavras que mereces ouvir, deixa-me treinar o sorriso que mereces ver, já não demoro, mais uma hora e saio de casa, desta casa que encheste de vida com a tua vida, lembras-te? a casa está igual e no entanto nunca como dantes
- não me morras sem que te veja
peço se calhar muito e peço no entanto apenas isto, caramba peço apenas isto, eu hoje sou criança e não quero nem bolos, nem palmas, não quero nada, quero apenas que esta hora passe depressa para pegar na minha coragem e sair a correr, a voar, até chegar perto de ti, até pegar na tua mão tão gasta e no entanto tão bela, até olhar os teu olhos já cansados e nesse momento mágico poder dizer-te apenas um imenso obrigado por tudo o que foste para mim
- não me morras sem que te veja
prometo que já não demoro