O voo de uma vida.
Na sala de casa dos meus pais existia um estranho gira discos que a mim, puto, me lembrava uma nave extraterrestre, circular, branco e preto, encimado por um tampo de vidro escuro rachado ao meio por uma cicatriz de cola, visto que cedo se viu vítima de uma acrobacia mal sucedida onde nenhum calcanhar era suposto e desde então a cicatriz de cola, dando-lhe aquele ar ferido mas nem por isso menos competente na hora de receber aquelas rodelas escuras que no nosso caso, eram sempre as mesmas duas e assim, ou eu ou o meu irmão, sentados naquele sofá cinzento e preto, mascarados de rato Mickey graças a uns headphones gigantes que ainda por cima, tinham um divertido fio enrolado, igual aos dos telefones de então. O meu chamava-se The Number Of The Beast e o do meu irmão Live After Death. Hoje, sei que foram os únicos discos que mereceram a honra de me terem sentado exclusivamente com o propósito de os ouvir. Diria mesmo escutar, ler, observar, cheirar, beber, absorver, cada detalhe, cada insignificância, cada acorde, como se uma nova e derradeira descoberta, num fascínio sempre renovado que, pasme-se, ainda hoje me consome cada vez que o nome Iron Maiden se cruza no meu caminho, não por qualquer espécie de nostalgia dos tempos em que se levava termo para a escola, mas sim por constatar que, rugas à parte, nada mudou, que tempo nenhum foi capaz de lhes alterar aquela essência que há vinte e cinco anos me fez perceber qual seria "a" banda da minha vida. Por isso, quando na terça feira à noite assisti ao filme Flight 666, assisti sobretudo à longa metragem da minha vida, numa viagem feita aos comandos não do Ed Force One, mas sim de um estranho OVNI branco e preto que, talvez por ter o vidro da cobertura ligeiramente partido, deixava entrar uma leve brisa que, ao bater-me de frente nos olhos, me arrancava à face uma secreta e fugitiva lágrima de emoção.