19
Fev08
O varredor.
Marco
Levantava-se ainda nos últimos minutos da noite, despidos de calor, alegria, entusiasmo e deixava que os movimentos o levassem como o leito de um rio, deslizando lentamente em cima do chão, observando-se a agir já sem admiração, esquecido do que fora um dia, aceitando apenas e a casa de banho, gelada, a farda, repetida, o rosto, inerte, a porta, aberta, as escadas, escuras, a rua, deserta, a paragem, abandonada, o autocarro, finalmente, os bons dias, do costume, o acento, lá atrás e a cidade, deserta, a dormir, salpicada de luzes vermelhas que poderiam muito bem ser apenas os seus pensamentos, perdidos, fugazes, parando e arrancando para sempre.A sua vassoura era ainda à antiga, longa, de madeira e terminada num molho de ramos toscamente amanhados, rijos, ásperos, velhos, capazes de resistir às superfícies rugosas, aos objectos imprevistos, capazes de varrer as horas, varrer as manhãs, varrer o lixo, varrer as memórias por debaixo dos seus sapatos gastos de passos perdidos, vagos, comandados à distância, a partir de todos os lugares que teimosamente habitava, lugares que nem sempre lugares, instantes, pensamentos, ideias, flashes sucessivos, luzes vermelhas na noite, ora acesas, ora apagadas, perdidas e a vassoura dançando cada compasso, cabisbaixa, automática, triste.
O varredor já acreditara. Já sonhara impossibilidades, já idealizara possibilidades. Já fora um dia, feliz dentro dos seus sonhos. Já se levantara de sorriso rasgado e já comandara todos os seus movimentos, moldando-os à sua vontade férrea de desenhar-se em tons vivos, numa tela interminável, permanente. O varredor já acreditara. O varredor já acreditara. Já gastara o seu tempo em lugares longínquos, em gestos definitivos, já vivera um dia dentro de cada dia, uma hora dentro de cada hora, um minuto dentro de cada minuto. Já sentira o intenso travo da plenitude. O varredor já acreditara. O varredor já acreditara. O varredor já acreditara...