19
Dez07
A marioneta.
Marco
Quando deixada ao abandono – e tantas vezes deixada ao abandono, a sua figura triste demais, braços e pernas misturados, confusos, parecendo um complexo jogo de mikado e a cabeça caída, inerte, morta, dando ares de ter desistido, conformada àqueles fios que a sua vida toda quando em certos dias e apenas em certos dias, guiada, conduzida, levada. Nunca ela, apenas o que dela queriam fazer, todos os movimentos, todos os gestos, todas as vontades que afinal, impostas, forçadas, numa aparente felicidade que ninguém sonharia a mais infeliz de todas.Nos seus sonhos mais profundos imaginava-se livre, forte, capaz de passos decididos e vontades próprias, imaginava-se senhora de si e respeitada por isso mesmo, não pelos puxões a braços e pernas em escassos minutos de atenção que logo substituídos por horas, dias de mikado sem que ninguém a retirar peça a peça em mil cuidados e delicadezas. Tinha saudades. Saudades do que não foi, saudades de viver, saudades de sentir, saudades de querer, saudades de ser livre, de poder tudo, poder simplesmente escolher e caminhar e correr e sentir o pulsar das coisas.
Quando deixada ao abandono – e tantas vezes deixada ao abandono, pensava em cortar todos os fios que a prendiam a nada, mas o medo, se calhar nem o medo, o hábito, ou nem o hábito, nada, simplesmente nada e por isso presa, sempre presa, olhando os fios, odiando os fios, odiando-se a si mesma, odiando o mikado, odiando que ninguém cheio de mil cuidados e delicadezas, odiando que alguém afinal com mil cuidados e delicadezas, só que longe, agora longe, e todos os sonhos, todas as vontades reduzidas a puxões de braços e pernas, numa aparente felicidade que ninguém sonharia a mais infeliz de todas.