30
Nov07
A fome.
Marco
A questão de saber se os três filhos de verdade, feitos de carne e osso como eu, de cara provavelmente suja, roupa velha, rasgada aqui e ali, nem sequer me preocupou. Não que as crianças não me preocupem, claro que me preocupam e espero que estas três, se de verdade feitas de carne e osso como eu, estejam agora a brincar algures, às escondidas por exemplo, ou à cabra cega, à apanhada, à macaca, sei lá tanta coisa, ao berlinde, ao pião, ao elástico, mil e uma hipóteses, desde que felizes por mim tudo bem, é o que se quer acima de tudo, sim, porque na minha cabeça, a palavra criança rima com sorriso.Aqui o que verdadeiramente me doeu foi que a fome de verdade, feita certeza absoluta na forma sôfrega como engolia aquele pedaço de sopa, qual elixir da vida eterna, enquanto sentada no chão, à porta do supermercado onde sempre compro o meu almoço. Um pequeno pedaço de cartão resumia toda a sua vida a três filhos que não sei se de verdade, a um desemprego que desconfio real, a um dormir na rua impossível de verificar, a uma fome flagrante e a um “Bum Natal” que me deixou a pensar na ironia da vida, capaz de vergar estas pessoas que por alguma razão perderam a força para lutar de igual para igual connosco.
Ter fome significa tanto mais do que vontade de comer. Fome a sério, não gula. Fome. Fome terrível que felizmente nunca senti. Fome que deve aleijar por dentro, fome de tanta coisa, fome de tudo. Fome até de viver, em vez de existir apenas, ali caída – não sentada... caída, deixada, atrás de um cartão onde muito gostaria de escrever levanta-te, pega nesta comida toda e vai ter com os teus três filhos - espero que de verdade, e já agora leva também estas roupas e estes brinquedos e sejam felizes e não voltes a cair, não deixes que isso te aconteça, tudo de bom para vocês e já agora, visto que o dia se aproxima... Bom Natal com “o”.