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Abr07
Um toque de perfeição.
Marco
Passava os dias sentado à sua frente. Os dois ali, como se um corpo único, uno, indivisível. Tocava-lhe com uma delicadeza sublime, sentindo-lhe a energia na ponta dos seus dedos e deixando-a percorrer todo o seu corpo, toda a sua existência. Alimentava-se dessa busca. Uma busca que todos os dias o motivava a sentar-se de novo naquele banco e a tocar-lhe como se a primeira vez, aquela emoção, aquele nervoso renovado, aquele tremor, aquele sentimento que a ninguém conseguia explicar por palavras. Sempre tão escassas...Cada tecla do seu piano funcionava para si como um fragmento de uma história maior, eternamente inacabada, em permanente afinação. Uma história que procurava compor experimentando novas sequencias de toques, sendo que cada toque era algo que lhe saía da alma com o fervor dos apaixonados, cortando-lhe o ar ao mesmo tempo que lhe disparava o coração. O seu medo não era falhar. Nada disso. Gostava das sequencias que os seus dedos lhe propunham, mas dentro si, algo lhe dizia que a perfeição estava ainda por se fazer ouvir.
E queria ouvi-la. Queria senti-la, tocar-lhe tocando-a. Sabia-a ali mesmo, escondida algures por debaixo daquelas teclas brancas e pretas a brilhar com a luz do dia. Parou um instante. Deixou-se ficar quieto, sereno. Fechou os olhos. Imaginou. Viu. Viu com toda a nitidez a imagem da perfeição tal como a entendia. Como a sonhava. Um rosto, um sorriso, uma melodia. Encostou de novo os dedos no seu piano e deixou-os ir, sozinhos. Os seus olhos continuavam fechados, já que a via tão bem. E eles foram. Os seus dedos. Voaram. Nesse dia, tocaram a perfeição.