22
Jan07
A menina triste.
Marco
Impressionou-me o seu olhar. O contraste nos seus olhos assustados, brancos e negros. Os seus olhos fundos, na sua cara suja, encostada a um pilar de madeira. Toda ela imunda, um farrapo, selvagem. Não sabe falar, não conhece a linguagem, a comunicação. Vive fechada em si mesmo. Todo o (seu) mundo ela mesmo, nada mais. Sem um nome. Sem uma identidade. Sem uma história. Um pedaço de existência de repente resgatado para uma realidade que nunca foi a sua. Nem será.Chamam-lhe a menina selvagem e estima-se que tenha andado perdida durante dezanove anos, entregue a si mesma nos matos mais profundos desse remoto país chamado Camboja. Hoje notícia de televisão, mascarada com roupas que não lhe servem, abruptamente trazida para uma realidade sensacional que a esmaga, que a usa. Que a espreme. Pareceu-me assustada, triste, vazia. Pareceu-se desejosa de fugir de novo para o seu mundo feito apenas de si mesma.
Um mundo onde porventura era feliz. Impressionou-me o seu olhar. A ausência do seu olhar. Imagino como se deve sentir tão só no meio de tanta gente e imagino como deveria sentir-se tão acompanhada quando apenas consigo mesmo, no seu verdadeiro mundo de árvores, raízes, terra, animais, rios, fome, frio, chuva, sobrevivência. Um mundo improvável, impossível para nós, mas o mundo dela. Não este onde é capa de jornais, o rosto da notícia. Este que a consome hoje, para esquecê-la amanhã.