"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
Giras as canções que nos fizeram sofrer, não o sofrimento em si, mas as canções, como bolas de sabão cheias de histórias que sem aviso a flutuar entre os olhos, trémulas, frágeis, as canções e já não as canções, os dias, inteiros, olhares, sorrisos, momentos e depois, nada, porque sempre um nada como ponto final parágrafo e por isso o sofrimento eternizado em três quatro minutos de canções que giras porque giras, mas giras também por isso, porque pedaços de nós e às tantas já o artista sem direitos de autor, o artista apenas um pobre coitado a cantar a nossa canção, a fingir-se de banda sonora da nossa vida, o artista num escaparate esquecido, metido lá bem atrás dos mais desinteressantes, cheio de pó dos anos passados, o artista expropriado, vivendo de acordes tocados para ninguém, esperando que alguma moeda a tropeçar e a estatelar-se ao comprido no chão, perto de si, o artista a tocar, eu a escrever fazendo-me dele, aqui sentado como se num túnel de metro, as pessoas à minha frente, passando com pressa para irem a sítio nenhum, gira esta imagem, o escrevedor de rua, dedilhando palavras não lidas, escrevendo frases que o vento faz voar até se perderem no céu como os balões das crianças distraídas - e que triste era vê-los pequenos e mais pequenos tão pequenos até que nuvens apenas, os textos flutuantes, as palavras, pergunto: quantas frases fez hoje a chuva cair no chão, quantas gloriosas composições afogadas em poças de água castanha, o artista esquecido, o escrevedor de rua, eu a remexer papéis e mais papéis, eu a arrumar lápis e canetas, eu a pegar no banco onde por horas fingi que fui feliz, eu já de pé, caminhando rua fora, lembrando todas canções giras que ainda não ouvi, olhando fundo dentro do meu chapéu, procurando talvez uma ou outra moeda com os joelhos ainda em ferida, caminhando, caminhando...
Três anos depois nada mudou, nada ocupou os lugares que deixaste vazios porque na realidade nenhum desses lugares vazios, tu ainda invisível em todos eles, fazendo parte de cada detalhe, cada pormenor, tu escrito nas paredes, escondido nas gavetas, dobrado no roupeiro, tu em todo o lado, fazendo da casa aquilo que nunca deixará de ser, tu história, tu memória, tu presente e futuro, tu a viveres muito depois de há três anos, tu vivo hoje, aqui, agora, vejo-te entrar a porta, distingo-te o cabelo de prata e os olhos de mar profundo, encanta-me o teu sorriso castiço que afinal sorriso nenhum, gargalhada, alta, verdadeira, gargalhadas com significado, com vida lá dentro, coisas do arco da velha, as pedras que esculpiste, as viagens que fizeste, as coisas que criaste, tudo hoje ainda real, nada mudou, nada, o que lutaste, o que sofreste, o que acreditaste, nada mudou, vejo-te entrar na porta, sinto-te o cheiro, respiro-te, admiro-te e penso - os heróis afinal existem, penso ainda - quero ser como tu, quero saber o segredo da simplicidade, conhecer o truque da dignidade, quero poder dizer, daqui a uns anos, uma ocasião e depois com a tua graça, com o teu jeito em cativar, ter os olhos brilhantes dos netos a olharem-me e a sorrirem-me no fim, a sorrirem-me não, prefiro gargalhadas, daquelas altas, verdadeiras que só tu sabes fazer e digo sabes porque três anos depois nada mudou ou melhor, mudámos nós com a ideia de seres invisível mas apenas isso, invisível, um super poder que nunca me ensinaste talvez por achares que ainda me falta viver e escrever muita história até um dia ser, finalmente, herói. Como tu.
Não lhes sei o nome mas sou capaz de arriscar alguns e por isso penso em Joana quando lembro aquele sorriso prisioneiro de um corpo desobediente e pergunto-me logo como viver num corpo desobediente sem fazer ideia de qualquer resposta minimamente decente e ainda assim a Joana incompreensivelmente feliz com a minha presença, tocando-me num desafio para o recreio, eu sem jeito, sem saber o que fazer, como reagir, não incomodado, esmagado, e logo a Joana corredor fora em direcção aos amigos que dentro de casa porque na rua aquela chuva pálida, sem vontade e por isso nada de pátio, eu de caderno na mão, fingindo escrever aquilo que não caberia em resmas inteiras de papel em branco, eu já a olhar o Jaime numa luta desigual, injusta, cruel, contra um iogurte natural, também ele prisioneiro de um corpo desobediente, miúdo, dez anos no máximo, um iogurte natural, lá fora a chuva pálida e eu a caminho da sala seguinte com uma palavra apenas na minha cabeça - dignidade, mais nada, os passos a desaparecerem bem por baixo dos pés, eu a escrever tremendos nadas ainda siderado pelo olhar fixo do Ricardo, tão directo, tão meigo, tão sereno, zero palavras apenas olhos - dignidade a repetir-se vezes sem conta, eu que à porta todo dores de cabeça, sinusites e outras maleitas dessa família, eu que só estava ali por causa de um simples anúncio, agora já na secção dos muito dependentes a imaginar como se contam os minutos daquela maneira, sem mais nada poder fazer ou dizer, apenas existir e estar ali, o Rui... um puto caramba, oito nove anos não mais, lá estou eu outra vez a escrever tremendos nadas, podia aqui ficar a esculpir as mais belas frases e por muito que me esforçasse, jamais conseguiria retratar a beleza daquelas pessoas todas, jamais faria jus à sua dignidade e talvez por isso, vou ficar-me por aqui, fechar um pouco os olhos e lá bem no fundo, desejar que aqueles corpos ganhem juízo de uma vez por todas e passem a ser mais obedientes aos seus donos que tanto merecem.