"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
Na sala de casa dos meus pais existia um estranho gira discos que a mim, puto, me lembrava uma nave extraterrestre, circular, branco e preto, encimado por um tampo de vidro escuro rachado ao meio por uma cicatriz de cola, visto que cedo se viu vítima de uma acrobacia mal sucedida onde nenhum calcanhar era suposto e desde então a cicatriz de cola, dando-lhe aquele ar ferido mas nem por isso menos competente na hora de receber aquelas rodelas escuras que no nosso caso, eram sempre as mesmas duas e assim, ou eu ou o meu irmão, sentados naquele sofá cinzento e preto, mascarados de rato Mickey graças a uns headphones gigantes que ainda por cima, tinham um divertido fio enrolado, igual aos dos telefones de então. O meu chamava-se The Number Of The Beast e o do meu irmão Live After Death. Hoje, sei que foram os únicos discos que mereceram a honra de me terem sentado exclusivamente com o propósito de os ouvir. Diria mesmo escutar, ler, observar, cheirar, beber, absorver, cada detalhe, cada insignificância, cada acorde, como se uma nova e derradeira descoberta, num fascínio sempre renovado que, pasme-se, ainda hoje me consome cada vez que o nome Iron Maiden se cruza no meu caminho, não por qualquer espécie de nostalgia dos tempos em que se levava termo para a escola, mas sim por constatar que, rugas à parte, nada mudou, que tempo nenhum foi capaz de lhes alterar aquela essência que há vinte e cinco anos me fez perceber qual seria "a" banda da minha vida. Por isso, quando na terça feira à noite assisti ao filme Flight 666, assisti sobretudo à longa metragem da minha vida, numa viagem feita aos comandos não do Ed Force One, mas sim de um estranho OVNI branco e preto que, talvez por ter o vidro da cobertura ligeiramente partido, deixava entrar uma leve brisa que, ao bater-me de frente nos olhos, me arrancava à face uma secreta e fugitiva lágrima de emoção.
Às tantas foram-se as ideias todas e eu agora parecido a uma corrente de ar, feito movimento fugitivo de coisa nenhuma, frio, desagradável, sentado em frente das evidências sem ser capaz de lhes ler o óbvio, procurando-lhes o outro lado, apenas o outro lado, na esperança penso que da essência, sim da essência, desse género de segredo escondido, mapa revelador de cada coisa, cada sombra de gente a mover-se por entre espaços ainda desocupados, sem tempo, fugindo, correndo sem rumo rumo a suas casas, sem direcção, à deriva pelas correntes sempre fortes demais para serem contrariadas, as correntes que às tantas me prendem as ideias todas e eu agora aqui, em esforço, lembrando tempos idos, memórias que se ergueram como explosões e das explosões lembro as pessoas, lembro aquelas terras em que ninguém manda, aquelas terras feitas no nada, nascidas da fúria divina, verdes como o paraíso, escuras como o inferno, contrastes, ironias, aceitação, vejo aceitação nos rostos das pessoas, vejo esse saber das regras universais, essa consciência de que o mundo só o muda o mundo, mais ninguém, e daí a aceitação, supremo gesto de sabedoria, quais anciões jogadores de sueca, olhando resignados as cartas que a sorte lhes escolheu, fazendo delas o seu jogo de vitórias, o seu jogo que conquistas, eu a estudar-lhes cada passo, vigiado por um mar que nunca dorme, uma sentinela incansável, sempre disposto a lembrar-lhes o fim das ilusões, tão cruel quanto belo, omnipresente, trazendo aqueles a que chamei os sonhadores das estrelas cadentes, que ali se encontram em datas impossíveis, celebrando o efémero, brindando a um até sempre que ali tudo significa, antes de partirem tal como eu parti, eles rumo a novos portos de abrigo, eu sobrevoando o pôr do sol, olhos nos olhos com a perfeição, deslumbrado e ao mesmo tempo preocupado, preocupado que as ideias me fujam, escorregadias, na hora de descrever o outro lado de tudo o que vi, nos Açores.