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Deep Silent Complete

"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto

Deep Silent Complete

"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto

13
Nov08

Dois anos.

Marco

De todas as coisas que nos prometemos um ao outro, não cumprimos ainda o nosso sonho de na minha reforma me instalar em definitivo bem perto do estádio de Alvalade numa casa espaçosa tendo-te a ti como jardineiro, não fossem as flores sofrer com a minha falta de jeito para as regas e para as podas e assim eu bem mais descansado com esses assuntos, preocupado apenas com os meus netos quando eles lá fossem brincar e com o Sporting todos os dias visto que por este andar nem em 2050 será campeão como o teu Porto, com tanto ponto de avanço que nem chega para te preocupares com isso, dando-te tempo para gastares com as coisas que te completam e fazem de ti único.

Dois anos não é tempo nenhum e é tanto tempo sem ti, sem a certeza de te saber nos teus afazeres como a horta - será época de batata? favas? couves? percebo tão pouco da vida, como a pesca - será época de pargo? robalo? safio? percebo tão pouco da vida, percebo tão pouco das coisas que eram as tuas certezas, que sabias desde sempre, tantas coisas que em nenhum livro, em nenhuma enciclopédia, coisas que são a vida, que ensinavas em gestos simples, histórias que contavas, expressões que utilizavas, sabedoria, dignidade, valores que eram uma extensão de ti, que eram naturais, como se isso de ser enorme fosse para todos, fosse uma escolha, uma opção e pronto, já está.

Dois anos não é tempo nenhum e é tanto tempo sem ti, é tanto tempo a não ver-te nos sítios onde estavas sempre, a aleijar-me com o peso da tua ausência, a doer-me na pele cada espaço que não preenches, a perguntar-me porquê e a não saber responder, a lembrar-me quando nós éramos presente e não saudade, esta saudade que agora transformo em palavras, as poucas que encontro para descrever o que sinto, à falta de jeito para fazer outras coisas como as regas e as podas, parece que já estou a imaginar, eu a ir ver o Sporting e a olhar as flores murchas, a relva enorme e a lamentar perceber tão pouco da vida, a lamentar termos deixado este nosso sonho por realizar, de todas as coisas que nos prometemos um ao outro.

03
Nov08

O operacional.

Marco

Os gestos, imagino-os meticulosos. Deve gastar com certeza tempo na perfeição de um vinco, no aprumo de um colarinho, na dobra de umas calças. Faz um tipo de frio a que se desabituou. Deve custar-lhe com certeza o click da mala já fechada, cheia dele mesmo ou seja de tudo aquilo que lhe desenha os contornos, que define a fronteira entre ele e o resto, roupas, objectos, sentimentos, recordações, silêncios. Tudo dentro de um rectângulo que duas pequenas rodas ajudam a transportar rua fora, estrada fora, mundo fora. Diz-se um operacional e é assim que o observo, sempre de serviço, pronto para tudo, corajoso, altivo, empenhado.

Existe um piano de onde escorrega uma melancolia vestida de acordes certeiros. São minutos. Não existem horas ou dias. Apenas minutos que caminham invertidos. Ele conta-os, um por um e na pressa, vive-os, consome-os pegando em todos os sorrisos armazenados para os distribuir qual carteiro na sua bicicleta, morada a morada. Faz um tipo de frio a que se desabituou. Devem custar-lhe os casacos, as camisolas, os cachecóis. Um frio sobre a pele, secando-a, rasgando-a. E os minutos, e a mala, e as dobras, os detalhes alinhados, arrumados, esperando apenas a inevitabilidade do momento para levarem o operacional para longe.

Acontece numa manhã. Acontece sempre numa manhã. Primeiro a pressa de chegar, o carro estrada fora e aquele olhar desconfiado no relógio. Depois o aeroporto, aquele adeus que é sempre até já, o passaporte, o visto e o rectângulo a mover-se ansioso sobre as rodinhas, indeciso se o frio fora ou dentro, o frio já dentro, o frio já o habitual, o do costume, um frio calado que lhe habita o estômago e que voa consigo para o calor de Luanda, onde a vida lhe ensina que ser operacional é isso mesmo, é saber arrumar a saudade sempre muito bem engomadinha, como se pronta a estrear, até ao dia em que os minutos e sempre os minutos a caminhar de novo invertidos.

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