"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
A franja lisa que se equilibra mesmo por cima dos olhos pinta-lhe no rosto uma inocência que comparo à dos dias longos em que de tarde era feliz a ver o agora escolha, acreditando que aquelas cidades de ouro eram a sério e eram tudo aquilo que queria descobrir um dia mais tarde, quando fosse já grande e pudesse sair estrada fora sem ter de faltar às aulas de meio físico e social, educação física e outras que na altura eram o meu emprego e que tanto tempo me consumiam a mim, rapaz aplicado em ser o mais competente e verdadeiro de todos os Indianas Jones desta vida.
De modo que a franja fez-me acima de tudo acreditar, o que diga-se, é bastante saboroso, embora custe sempre aqueles jantares de toda a gente com toda a gente sedenta de um olhar, de um gesto, de um momento para gravar nas recordações que ficam do lado de cá, com aqueles a quem a vida desvia de aventuras mais gloriosas, calhando-lhes em sorte filas de trânsito, pessoas que se acotovelam, algo tristes, algo esquecidas de si mesmas, correndo empenhadas em derrotar um passar de tempo sempre impossível de contrariar, por maior que seja a habilidade.
E assim naquela noite em que a franja esvoaçou uma última vez antes do check- in, lembrei-me que os grandes heróis são assim mesmo, não têm nunca lugar fixo, incapazes que são de resistir a uma nova e ainda mais difícil aventura e por isso mesmo não me chateei, bem pelo contrário, sorri-lhe, abracei-a e corri para casa, onde me sentei e onde todas as tardes espero, à frente da televisão, o agora escolha, para poder ver cada detalhe dessa tua aventura na cidade de ouro que te recebeu de braços abertos, orgulhosa que está por ser nela que depositas os teus sonhos. Nós, claro está, sonhamos contigo!
Naquele sucessivo ecoar de toques que mais pareciam as badaladas intermináveis de um relógio avariado nas seis da tarde seis da tarde seis da tarde seis da tarde seis da tarde seis da tarde um livro inteiro por desenhar – que os livros desenham-se com palavras, e apenas o nada, acompanhado do som de um motor parado, estacionado, esperando, esperando, e apenas o nada que eram aqueles toques sucessivos que muito bem poderiam ser pontos de interrogação, compassados, ou se calhar reticências, talvez reticências, não, ponto final... parágrafo.
Do outro lado talvez um olhar e se calhar um agora não me apetece ou talvez um é melhor não atender e daí as badaladas e tanta coisa a ser decidida naquela quantidade de segundos que se despedaçaram no chão tornando-se tempo perdido, tempo sem tempo para ser recuperado, ido, do outro lado uma escolha, se calhar um talvez seja melhor assim ou quem sabe um agora não é o momento certo como se isso dos momentos certos existisse, como se a vida tivesse uma hora marcada e tudo o resto fosse sala de espera onde uma pálida luz nos lembra da nossa precária existência.
O motor era calado, baixinho, sereno e no céu voava um vento livre, fresco enquanto cá em baixo um relógio avariado nas seis da tarde seis da tarde seis da tarde seis da tarde seis da tarde seis da tarde e as páginas limpas de texto, em branco, caladas, fechadas, arrumadas e o motor já não calado, acelerando, gritando estrada fora, clamando as palavras da incompreensão e deixando-as para trás, como um rasto de memórias que disso não passariam, vergadas, esmagadas ao peso das badaladas perdidas que nessa tarde haveriam de ecoar pela última vez.
Eles eram jovens e não acreditavam em dias simplesmente parecidos, muito pelo contrário, sabiam-nos tão distintos como as paredes dos edifícios que se espalham cidade fora, piscando-nos o olho em sinal de boas vindas como se todo o tempo até então tivesse sido de uma espera longa, angustiosa e como não acreditavam em nada disso, decidiram arriscar, decidiram viver uma história de cada vez, esquecendo sempre o amanhã, decidiram vencer as horas pelo cansaço, decidiram encontrar-se ali, uns com os outros e consigo mesmo, desconhecidos com desconhecidos, combinaram em segredo, fizeram as malas, soltaram o último suspiro e partiram.
Eles viviam as suas vidas fazendo equilíbrio em cima dos limites e sorriam sempre que espreitavam para baixo, como se o grande risco que corriam fosse não correrem qualquer risco e brindavam a isso e avançavam seguros e eu a invejá-los – talvez a admirá-los, a cada pequeno instante, como se o mais ínfimo detalhe fosse uma ideia genial que me escapou por entre os dedos, como se aquelas personagens não fossem de verdade e sim actores da Residência Espanhola, como se aquelas ruas quentes e requintadas não fossem Barcelona mas sim alguma sala de cinema onde nenhuma história vive mais do que um punhado de dias terrivelmente finitos.
Já todos o sabiam à partida, eu mesmo acho que o sabia à partida, e ninguém ousa sequer pensar muito nisso. O tempo passa quando desviamos o olhar e por isso a sua atenção – a minha atenção, os seu olhares ávidos do sabor que se esconde dentro de um momento, os seus passos a cruzarem-se nos meus, as suas palavras a mergulharem nos meus ouvidos, os seus sorrisos afundados num olhar que procurei nunca desviar, mas que infelizmente, por certo numa pequena distracção que tive, se transformou num toque impiedoso de despertador, chamando-me, empurrando-me para fora daquela história que se fosse eu a escrever, não acabaria nunca.