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Abr08
O senhor dos Nike Azuis.
Marco
Sentado horas de olhos cravados no chão pensa provavelmente naquilo que o separa do fim, fechado atrás de uma pele machucada que lhe fica pequena, que não lhe serve, apertando-o num desconforto visível até por quem passa de carro como eu, dia após dia, já incomodado com aquele olhar derrotado, muito impressionado com a guerra que trava com os movimentos, ele contra ele mesmo, arrastando aquele corpo como um fardo, pesado, torto, gasto, em direcção a parte nenhuma, fazendo de cada passo a sua única luta, o seu derradeiro objectivo, a sua última obrigação. Chamo-lhe o senhor dos Nike Azuis visto que lhe desconheço tudo, nome, idade, origem, história, família, amigos, gostos, sonhos, manias, hábitos, desconheço-lhe até a voz visto que eu sempre de carro e ele sempre ali, reduzido àquele pedacinho de existência, calçado dentro daquelas sapatilhas que repete todos os dias e nas quais por certo deposita as poucas forças que lhe restam, sentado, sozinho – sempre sozinho, de olhos cravados no chão, provavelmente contando pedrinhas minúsculas ou então descobrindo desenhos nos sulcos da estrada que se lhe estende.
Ai como eu gostaria de ser senhor de textos perfeitos onde no fim de todas as palavras a felicidade e assim escreveria o senhor dos Nike Azuis a levantar-se numa bela tarde de calor onde o sol pintaria o céu em tons laranja rosa e de repente as suas pernas já não trémulas assim como as suas costas já não vergadas ao impossível peso de uma tristeza oceânica e o senhor dos Nike Azuis olhando de novo em frente, a chamar-se provavelmente Joaquim, ou Manuel, ou Francisco, rodeado de amigos, contando histórias, tendo vontades, sonhando simplesmente coisas. Ai como eu gostaria de ser senhor de textos perfeitos...