"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
Era de manhã que gostava de pegar nesse monte de palavras complicadas como objectiva, obturador, tripé, diafragma, foco, profundidade de campo, e sair com elas bem guardadas à caça de instantes, a fim de os eternizar, como se isso do tempo fosse coisa possível de parar numa fotografia e como se nesse pedaço de instante houvesse o derradeiro testemunho de uma verdade universal, assim como a terra, assim como o mar, assim como o vento fresco que a acompanhava nessas horas ensonadas em que, com um monte de palavras complicadas, jurava ser completamente feliz.
Dizia em jeito de brincadeira que a essa hora a mentira ainda dormia, mas sentia, sentia de facto que durante a manhã, a verdade existia e podia ser tocada, como se o dia fosse mais honesto nessa hora, mais nítido, pintando a cores de poesia instantes impossíveis de descrever senão nos cliques que fazia com esse monte de palavras complicadas como objectiva, obturador, tripé, diafragma, foco, profundidade de campo, e com as quais alimentava toda a sua essência como pessoa onde cabiam ainda palavras menos complicadas como sonhos, ideais, simplicidade e felicidade.
Quando lhe perguntavam porquê sonhos, porquê ideais, porquê simplicidade, porquê felicidade, respondia apenas com um sorriso que explicava muito mais do que frases elaboradas que por mais lógicas, nunca ninguém entendia e por isso, um dia, pegou nesse monte de palavras complicadas como objectiva, obturador, tripé, diafragma, foco, profundidade de campo, juntou-lhe as menos complicadas e partiu, de sorriso no rosto, à procura da verdade de outras manhãs, porque para a caçadora de instantes, o mundo era belo demais para escapar à compreensão daqueles que, todos os dias, faziam questão de o ignorar.
As nuvens quedam-se baixas, adormecidas sobre a encosta onde as ovelhas saboreiam o doce travo da manhã. O tempo é parado. Na estrada, um velho detém-se a contemplar a beleza como se esta fosse coisa possível de agarrar, dobrar e meter no bolso. Vejo-o encantado. Imagino-lhe a casa, cheia de pequenos pedaços de encantamento, distribuídos por gavetas, prateleiras, a casa também velha, repleta de fotografias onde rostos ainda novos antes de todo o tempo, e de novo pedaços, como que, confirmando tudo de verdade nos fios húmidos de lembrança que por agora lhe escorrem rosto abaixo.
Nisto, uma criança, um puto, de cajado em punho, correndo e sendo seguido de um cão que imagino chamar-se Tang, e tanto sorriso numa só cara, como se a beleza fosse coisa de se respirar, possível de inalar e inspirar fundo, fundo, fundo, até que o peito prestes a explodir, reguila o puto, feliz, à volta do seu avô que quieto, envolto nas histórias que tantas, que tão belas, uma vida inteira, ele puto, ele novo, ele com dúvidas, ele com angustias, ele apaixonado, ele com certezas, ele com saudades, ele em dificuldades, ele e as pessoas, todas as pessoas, todas as histórias, toda a vida, enorme, gigante, suspensa sobre as nuvens ensonadas.
O tempo é parado. No tremendo branco destas paredes, sobra espaço para histórias, episódios, momentos. Sobra espaço que é e será sempre vida por viver, que serei eu talvez amanhã e depois, depois, depois. Por agora, olho apenas um momento, este momento à minha frente e sonho, sonho tudo como se a beleza fosse coisa de se imaginar, recordar, lembrar e logo lembro, lembro tantos olhares teus onde sem saber, fui tão feliz. Encontro, encontro-nos nesta bonita imagem que me faz reviver outros tempos, em que verdade nenhuma era a possibilidade de num dia como o de hoje, eu ter assim tantas saudades de ti.
O passado é como a roupa que nos deixa de servir. Esta frase ontem quando eu a regressar de Lisboa, depois daqueles lugares novamente e mais do que os lugares, as pessoas, algumas pessoas, como se arrumadas e dobradas na gaveta, com aquele cheiro a tempo parado, fechado, anos a fio sem que luz, sem que olhares, sem que a vida, sem que nada, tempo parado, fechado no escuro de um roupeiro antigo, apenas ali, aguardando talvez que um dia, algum dia, de novo, por um momento, tocando o presente como se dia nenhum entre aquilo que foi e aquilo que já não é.
Sou de repente capaz de lembrar uma velha camisola, julgo que de lã, vermelha com um enorme M branco no meio, M de Marco e eu com um sorriso todo ele esperança, inocência, reguilice, na fotografia da segunda classe. Sou de repente capaz de imaginar essa camisola e sei que se agora na minha mão, toda ela pequena, encolhida, cheirando a tempo parado, fechado, toda ela episódios idos, a professora Gertrudes, os trabalhos de casa, a natação, a Clara – como eu gostava da Clara!, as cassetes, o mini golfe jogado ao berlinde no Estoril, o Fernando que chamava de Fernandélio em resposta ao Marcaurélio dele...
O que diria eu hoje ao Fernadélio, diria Fernandélio?, perguntar-lhe-ia pela cassete dos Iron Maiden?, o que diria eu à Clara se a Clara de novo à minha frente?, mergulharia mais uma vez de chapão para a piscina só para a impressionar?, o que diria eu à professora Gertrudes se ela me passasse trabalhos de casa?, diria não me apetece nada?... Faltar-me-iam por certo palavras tal como faltaram ontem, quando decidi abrir uma gaveta há muito fechada, cheia de tempo parado, fechado, cheia de roupa que deixou de me servir e que por isso me pareceu tão estranha quando decidi voltar a experimentá-la.
E finalmente que eu aqui sozinho, depois dos ruídos das horas triviais onde telefones e falas e risos e segredos e comentários e buzinas e cães que ladram não sei se de fome ou birra, nunca fui muito de animais, gosto deles só que o jeito de jeito nenhum e por isso desconheço se fome ou birra daquele cão que todos os dias às onze da manhã a ladrar como se o mundo à beira do seu fim, desviando-me das linhas de texto, dos pensamentos que procuro arrumar e tão difícil que é arrumar pensamentos, tarefa de iluminados que irritantemente parecem sempre saber quem são, o que querem e como consegui-lo.
Aqui sentado, lembro de repente, um sorriso. O silêncio é tal que quase o ouço, som que existe dentro de nós, guardado, jogado fora no preciso instante em que se soltam as amarras da seriedade e pingam estrelas no olhos das pessoas, uma libertação, uma explosão. Lembro de repente, um sorriso. E depois as palavras que o acompanham, ditas como se ser feliz fosse simplesmente respirar, ditas desse jeito criança, ao pinotes sobre a gramática tocando-lhe apenas ao de leve, muito leve e logo depois, o som de uma onda, perfeita, a quebrar-se sobre o cristal precioso deste pensamento que agora me toma.
De repente lembrei-me. E se as ondas fossem todas elas, memórias? Aproximando-se devagar, umas perfeitas, outras nem tanto ou porque o vento, ou simplesmente porque não, e ao rebentar, a espuma dos tempos em que a perfeição se desenhava no bater acelerado de um coração que por agora, apenas em ritmo de rotina, mascarando-se de uma felicidade tão vazia como esta sala onde às horas triviais, todos os ruídos nos cegam este sentir mais completo que de repente me tomou e aqui se fez em forma de um texto que provavelmente ninguém mais compreenderá, mas que a mim, tanto me diz.