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Deep Silent Complete

"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto

Deep Silent Complete

"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto

27
Dez07

Naquela hora...

Marco
... seria capaz de jurar que um dia inteiro, dado o peso de cada minuto arrastado, eterno, tempo parado numa vida em suspenso por um momento que nunca mais. Pegou nas chaves do carro, desceu as escadas e fez-se à estrada sem destino, furando a noite quieta, sabendo que já nada o segurava ali, olhando as estrelas como se todas as perguntas às quais não consegue responder e conduziu até de manhã, envolto numa esperança que lhe fugia a cada instante. Naquela hora, pensou sempre nela, sabendo que depois, só lhe restava esquecer, durante todas as horas, durante todos os dias.

... olhou o relógio todos os minutos. Rápidos, fugidios, traiçoeiros. Na cama apenas sono profundo, leito de inconsciência e a esperança a prendê-la àquela cadeira desconfortável, de madeira velha, tantas vezes ocupada por esperanças derradeiras, choros saudosos, orações desesperadas. Sabia que o tempo a correr, sabia do combinado, sabia de tudo e porque sabia de tudo, sabia que dali não sairia sem notícias, sem um gesto, um sopro de vida que a devolvesse aos dias, às horas que correm normais, sem aperto no peito, sem a tristeza de saber por perto a palavra fim e rir-se, irónica, traiçoeira, cruel. Naquela hora, chorou.

... apenas flashes. E a prisão. Todos os movimentos como se de ferro e o escuro, a prisão dentro de um corpo deitado, inerte. Vivo, mas inerte. E flashes, a consciência de que ela ali, a vontade de um vai embora, eu estou bem, vai ter com ele, não o faças esperar, não o percas, vai, e nada, a prisão, o escuro, o ferro mais rijo do que a vontade, e flashes, os dois, o ciúme incontrolável, a loucura, a vontade de morrer, flashes, os comprimidos, os dois juntos, como? os comprimidos, todos, o sono, o escuro. Naquela hora, arrependeu-se de tudo e desejou, simplesmente, desaparecer.
26
Dez07

O Miguel.

Marco
Ao ver sem aviso o Nuno na televisão, lembrei-me logo do Miguel e em cada palavra do Nuno, o Miguel, aquele sorriso enorme que de tão grande mal lhe cabia no rosto, a vida no seu lado mais simples, mais feliz. Desde sempre me habituei a ver poucas vezes o Miguel, reencontros intervalados por longos meses ou mesmo anos de ausência porque a vida assim mesmo, feita de caminhos nem sempre paralelos, quase nunca cruzados, tantas vezes distantes. Vezes demais. Ainda assim, sempre que me via, o sorriso aberto, o abraço caloroso, o beijinho familiar.
 
O Miguel nunca deixou de me dar um beijinho porque eu como família para ele, nós todos como família para ele e por isso um beijinho. Ao ver sem aviso o Nuno na televisão, lembrei-me do Miguel a contar-nos da carta de marinheiro e da vontade de se fazer ao mar numa tarde de Domingo em que nós no Estoril, ele por certo já muito mais longe, por certo já ao leme do destino que procurava sempre fintar, por certo a sorrir de tanta felicidade porque o Miguel era isso mesmo, a felicidade feita pessoa, ainda que mil problemas, chatices ou preocupações.

Tenho saudades do Miguel. Não acho justo que naquela manhã o seu coração tenha desistido da carta de marinheiro, levando-o para esse local onde barco nenhum pode chegar, longe demais para ser verdade, cruelmente longe. Tenho saudades daquele sorriso gigante, sonoro, genuíno. Daquele rosto de criança feliz com um brinquedo novo, daquela alegria contagiante, daquele abraço, daquele beijinho que tempo nenhum conseguiu esvaziar de significado. Ontem, ao ver sem aviso o Nuno na televisão, lembrei-me do Miguel e também da Bila, do Ricardo, da Filipa e do Henrique.

Até sempre Miguel.
20
Dez07

Quinta-feira.

Marco
Este monte de papéis à minha frente espera-me numa paciência quase maldosa, grita-me Marco Marco Marco e ao mesmo tempo fundos de investimento, depósitos a prazo, preços imbatíveis, produtos fantásticos e frescos, e tudo e tudo. Fazem-me lembrar aqueles problemas da primária que eu, por alguma razão que nunca descobri chamava de proglemas e recordo o quão difícil foi para mim habituar-me aos problemas com b, quase mais difícil do que resolvê-los, decifrá-los. E lembro-me do Hugo Rafael e das reguadas que levava por tudo e por nada e do Nuno Filipe, do Luís Evaristo e tantos outros.

Lembro com uma saudade oceânica o concurso dos foguetões, desenhados milimetricamente em papel quadriculado e expostos na vitrina do pátio. Cada foguetão uma turma, cada quadradinho um x número de rifas vendidas e no fim, uma bola de futebol para o primeiro foguetão a levantar voo. Chovia sempre nos dias em que eram pintados quadradinhos e eu provavelmente teria jogo de basquetebol e comeria à pressa muitos dos cinquenta rebuçados Mouro que comprava com uma enorme moeda de vinte e cinco escudos no bar da escola.

Esse tempo passava tão mais devagar. As quintas-feiras podiam durar semanas inteiras e a chuva acabaria sempre por dar tréguas e eu teria tempo para levantar voo no foguetão vencedor, ainda com alguns rebuçados Mouro dentro dos bolsos não fosse dar-me a fome pelo caminho. Hoje as quintas-feiras são apenas umas quantas horas que passam a correr deixando-me aflito a olhar para estes papéis à minha frente, que me esperam numa paciência revoltante, como se isto de ter ideias fosse a mesma coisa do que combinar com o Migas escrever um texto sobre as quintas-feiras...
19
Dez07

A marioneta.

Marco
Quando deixada ao abandono – e tantas vezes deixada ao abandono, a sua figura triste demais, braços e pernas misturados, confusos, parecendo um complexo jogo de mikado e a cabeça caída, inerte, morta, dando ares de ter desistido, conformada àqueles fios que a sua vida toda quando em certos dias e apenas em certos dias, guiada, conduzida, levada. Nunca ela, apenas o que dela queriam fazer, todos os movimentos, todos os gestos, todas as vontades que afinal, impostas, forçadas, numa aparente felicidade que ninguém sonharia a mais infeliz de todas.

Nos seus sonhos mais profundos imaginava-se livre, forte, capaz de passos decididos e vontades próprias, imaginava-se senhora de si e respeitada por isso mesmo, não pelos puxões a braços e pernas em escassos minutos de atenção que logo substituídos por horas, dias de mikado sem que ninguém a retirar peça a peça em mil cuidados e delicadezas. Tinha saudades. Saudades do que não foi, saudades de viver, saudades de sentir, saudades de querer, saudades de ser livre, de poder tudo, poder simplesmente escolher e caminhar e correr e sentir o pulsar das coisas.

Quando deixada ao abandono – e tantas vezes deixada ao abandono, pensava em cortar todos os fios que a prendiam a nada, mas o medo, se calhar nem o medo, o hábito, ou nem o hábito, nada, simplesmente nada e por isso presa, sempre presa, olhando os fios, odiando os fios, odiando-se a si mesma, odiando o mikado, odiando que ninguém cheio de mil cuidados e delicadezas, odiando que alguém afinal com mil cuidados e delicadezas, só que longe, agora longe, e todos os sonhos, todas as vontades reduzidas a puxões de braços e pernas, numa aparente felicidade que ninguém sonharia a mais infeliz de todas.
13
Dez07

As mãos.

Marco
O número sessenta e seis obrigava-me a uma espera paciente naquele banco disfarçado de hospital onde a tosse se ouvia em pano de fundo, colorido de olhares cheios de vazio, apenas esperando que o número o seu número em conversas da treta sobre vizinhos e conhecidos num diz que disse por mim ignorado, fechado que estava dentro das minhas músicas de sempre, incapaz que sou de me separar delas, fazem-me confusão conversas da treta e mais a mais sou do tipo tímido, deixem-me lá estar no meu canto, tudo o que quero é que logo o sessenta e seis para voltar rápido às minhas escritas.

Sessenta e dois. Sapatos castanhos de atacadores marca Confort com sola de borracha, calças verdes escuro de bombazina, camisa branca, pulôver cinzento e casaco de fazenda também cinzento. Mãos nos bolsos e os documentos debaixo do braço esquerdo. Cabelo grisalho. Sessenta e três. A espera espera para todos e a impaciência já misturada no meio da tosse e do diz que disse. Até que as mãos. As mãos finalmente de fora e não umas mãos como todas as mãos, uma espécie de V feito de dois enormes dedos que seguravam a custo os documentos enquanto o sessenta e três perguntava mais uma vez aquilo que não queria perceber.

Naquela fracção de tempo, imaginei-lhe o porquê? Justifiquei-lhe os bolsos e perguntei-me se desde sempre, se algum acidente, se a guerra, se o destino, se a sorte. Olhei-o nos olhos e nada de respostas, apenas detalhes cada vez mais nítidos, uma grande aliança de casado, uma dificuldade em ser simplesmente normal que me deixou pregado ao chão, sessenta e quatro, já nada de tosse, nem de música, nem de nada, só porquês atrás de porquês até que sessenta e cinto, a vez dele, em direcção ao balcão e eu em direcção à porta porque duas da tarde e não sou cá pessoa de atrasos, hoje é outro dia e boa sorte para si, tenha cuidado com essas tosses todas, olhe que ainda lhe pegam.

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