"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
A questão de saber se os três filhos de verdade, feitos de carne e osso como eu, de cara provavelmente suja, roupa velha, rasgada aqui e ali, nem sequer me preocupou. Não que as crianças não me preocupem, claro que me preocupam e espero que estas três, se de verdade feitas de carne e osso como eu, estejam agora a brincar algures, às escondidas por exemplo, ou à cabra cega, à apanhada, à macaca, sei lá tanta coisa, ao berlinde, ao pião, ao elástico, mil e uma hipóteses, desde que felizes por mim tudo bem, é o que se quer acima de tudo, sim, porque na minha cabeça, a palavra criança rima com sorriso.
Aqui o que verdadeiramente me doeu foi que a fome de verdade, feita certeza absoluta na forma sôfrega como engolia aquele pedaço de sopa, qual elixir da vida eterna, enquanto sentada no chão, à porta do supermercado onde sempre compro o meu almoço. Um pequeno pedaço de cartão resumia toda a sua vida a três filhos que não sei se de verdade, a um desemprego que desconfio real, a um dormir na rua impossível de verificar, a uma fome flagrante e a um “Bum Natal” que me deixou a pensar na ironia da vida, capaz de vergar estas pessoas que por alguma razão perderam a força para lutar de igual para igual connosco.
Ter fome significa tanto mais do que vontade de comer. Fome a sério, não gula. Fome. Fome terrível que felizmente nunca senti. Fome que deve aleijar por dentro, fome de tanta coisa, fome de tudo. Fome até de viver, em vez de existir apenas, ali caída – não sentada... caída, deixada, atrás de um cartão onde muito gostaria de escrever levanta-te, pega nesta comida toda e vai ter com os teus três filhos - espero que de verdade, e já agora leva também estas roupas e estes brinquedos e sejam felizes e não voltes a cair, não deixes que isso te aconteça, tudo de bom para vocês e já agora, visto que o dia se aproxima... Bom Natal com “o”.
Quem o visse na rua poderia supor tratar-se daqueles vendedores de enciclopédias em fim de dia, com o nó da gravata a meio caminho entre os Restauradores e o Marquês de Pombal, o colete do fato a expor-lhe uma barriga inesperada e a camisa já meio fora das calças, amarrotada, a pedir cabide sabendo que o seu destino a máquina de lavar, escura, claustrofóbica, estonteante. O cabelo despenteado dava-lhe credibilidade e fez-me acreditar num dia cheio de vendas entre muitas portas que se lhe fecharam na cara, sem paciência, sem tempo, sem disposição.
Eu vi-o na Aula Magna e por isso, tive a certeza de tratar-se do Josh Rouse, o Senhor Simplicidade, autor de melodias facilmente geniais, dando muitas vezes a sensação de estar a tocar em exclusivo para nós, neste caso para mim. Aliás, desconfio que ontem mais ninguém naquela bonita sala, estou certo que veio cá por minha causa, razão pela qual me encostei (não muito confortavelmente) na cadeira e me deixei embalar numa espécie de sonho acordado com banda sonora exclusiva, feita a pensar em cada ilusão como se a mais bela de todas, pintando-as de magia infinita.
Sempre quis ser músico. Poder ter a minha banda e correr o mundo a mostrar as minhas canções, tocando em salas cheias exclusivamente para cada pessoa. Falando-lhes à alma. Fazendo-as sentir. Gostava de ter esse talento e nem sequer me importaria de vender enciclopédias porta à porta para ganhar a vida, se necessário. Vestiria o meu melhor fato – colete incluído, colocaria a gravata das riscas azuis e ao fim do dia, correria para o palco, pegaria na minha viola e em cada acorde, um sonho, uma ilusão, o mundo inteiro. À falta disso, encosto-me na minha cadeira, ponho o CD, fecho os olhos e em seguida vou a correr ver quem foi que tocou à campainha.
Havia nesse domingo algo mais do que apenas domingo e acordar, e missa ao meio dia, e almoço na casa dos pais, e bacalhau cozido com grão (arroz de gambas em alternativa), e o Expresso na mesinha em frente ao sofá e uma ida à Amadora à procura de discos em segunda mão e regressar a casa ao fim da tarde – amanhã dia de trabalho, e levantar ainda noite e todo o trânsito do mundo até Lisboa, havia mais qualquer coisa que essas lágrimas não diziam – e tanto para dizer, essa magreza quase impossível, doentia, esse silêncio que me gritava ao ouvido palavras mudas, tristes.
Hoje domingo e apenas domingo, certeza absoluta, desconheço os teus passos, ignoro se missa, se bacalhau (ou arroz), se Expresso, se Amadora, sei que amanhã segunda e eu longe de tudo isso, noutra galáxia, feita de certezas mais absolutas, há dois dias escrevi prefiro não sonhar a trair os meus sonhos e por isso cá vou eu, devagarinho, sem pressa nenhuma não vá o destino pregar-me alguma rasteira e depois um problema dos diabos, quilos de coisas para esquecer, fazendo lembrar o monte de roupa enxovalhada que se leva para a engomadoria a fim de recebê-la outra vez como nova.
Hoje domingo e no intervalo desta febre que me derrota, recordo a vida ou partes dela, impressiono-me com o que já fui e pergunto-me como serei daqui a muitos domingos, quando outra febre de novo e eu com tempo para mergulhar dentro de mim, tal como hoje e por isso estas letras, um domingo que não apenas domingo, muito mais do que isso, milhares de mentiras numa só verdade, tardia, cobarde, era isso que escondiam as lágrimas, e o silêncio ruidoso, triste, que hoje ao longe, nesta galáxia de certezas vagarosas, observo num misto de admiração e orgulho já que a roupa toda engomadinha, como deve de ser, pronta a vestir.
Naquela conversa, tantas questões impossíveis, a complexidade da palavra escolha e nela uma vida em suspenso perante os caminhos que se lhe deparam, à minha frente, tão perto e eu tão longe de uma resposta capaz, olhando-me a mim mesmo sem nada ver, nos olhos do meu grande amigo, uma escuridão tremenda e eu a correr na noite, num buraco escuro, as frases a saírem-me automáticas e eu ainda mais longe, ao sabor de novas perguntas que também pergunto todos os dias e a palavra escolha sempre lá, última fronteira entre presente e um futuro que parece nunca querer chegar, feito utopia errante, perdida.
Falava-me de razão e emoção, dois caminhos e eu emoção, sempre emoção que não gosto cá de contas nem explicações, fazem-me confusão as vidas presas a tremendos nadas que perfeitos no papel porque confortáveis, garantidos, aceites, sentimentos esmagados por uma razão sem emoção e eu emoção, sempre emoção, quem me conhece sabe disso, mais perguntas, mais histórias, eu a ouvir, a responder respondendo-me a mim, ao que sabia ser a minha história, capítulos sucessivos, repetidos na boca dele em questões impossíveis de responder e a palavra escolha, no fim de tudo, a escolha, a derradeira fronteira.
Hoje aqui, recordo essa conversa e sei que a resposta será razão, contas feitas talvez o caminho mais seguro como me dizias ontem e não te condeno por isso, não sou ninguém para o fazer, desde que te dês bem eu estou bem, sou teu amigo e sabes disso, a escolha é mesmo assim, difícil, quase cruel, é abdicar, é assumir, dar a cara, é saber que algo para trás, é travo a adeus, mas é assim mesmo, tu razão – força com isso, amigo!, eu emoção e por isso à espera, aqui à frente desta folha branca em forma de texto, à espera que nada nenhum consiga vencer todo o tamanho dos meus sonhos. Por mais perfeito que pareça no papel.
Há uma fotografia colocada dentro de uma moldura castanha escura, em cima da cómoda, no meio de outras tantas molduras mais ou menos castanhas, que eu sempre me habituei a olhar quando passo nessa sala em Cascais, onde tu durante tantos dias, que meses, anos, a chegar, a passar, a sair, dormir, existir. Gosto sobretudo do teu ar feliz, de peito cheio, orgulhoso, no meio dos teus irmãos em Entre-os-Rios, já algo maduros mas todos de saúde, cheios de sorrisos, provavelmente por saberem que aquela fotografia para sempre e nela, vocês todos e as saudades e as histórias e as vidas que ali jamais conhecem a palavra fim.
Sempre que algum dos teus irmãos partia, lembro-me de pegar nessa moldura para lhe conhecer o rosto e no meio deles todos, lá estavas tu com o teu ar feliz, de peito cheio, orgulhoso e eu orgulhoso de ti, dessa pose de actor de cinema que sempre tiveste, imortal no centro da fotografia, imortal, sempre eterno. Um ano depois, sempre que passo nessa sala em Cascais onde tu durante tantos dias, que meses, anos, pego nessa moldura castanha escura e detenho-me a olhar-te numa saudade insuportável, como se tempo nenhum tivesse passado, como se há horas eu a escrever a morte não te matou, só te levou, nem te levou, a morte nem te levou...
Hoje procuro-te nas estrelas, procuro-te nas memórias, procuro-te sempre, para tudo. Procuro-te dentro de mim, procuro-te nas palavras, procuro-te e encontro-te. Estás em cada pedaço do que sou, no que me tornei. Resulto de ti. Trago-te comigo, levo-te para todo o lado. Existes em mim. Tenho quase a certeza que se for agora a Cascais e pegar naquela fotografia, dentro da moldura castanha escura, também eu, também nós, todos lá, ao teu lado, com o nosso ar feliz, de peito cheio, orgulhosos, sabendo que ali para sempre, já que tempo nenhum jamais apagará o tamanho do nosso amor.