"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
Sentou-se num banco de madeira, já envelhecido pelos anos e decidiu-se a esperar. Era verde, fora todo verde, agora só verde em algumas partes, outras nem tanto, já gasto de tantos esperadores, alguns ensonados, outros esfomeados, alguns impacientes, outros resistentes. No bolso, uma bucha de ontem, também ela velha, seca, rija. As suas roupas já cansadas do seu corpo, a rasgarem-se nos cantos para poderem fugir. Um dia...
Era capaz de jurar que o mundo girava à volta daquele banco de jardim. Observava as pessoas a deslizar à sua frente, apressadas, umas com ar de aflitas, algumas a correr, todas esquecidas de si. Como que igual à estátua que se exibia, vigorosa, mesmo ao seu lado. Algum poeta, ou talvez um médico famoso que ali ficou, imponente, quase feliz, para sempre. Ele nada disso, apenas ele, à espera de coisa nenhuma, apenas ali.
O dia foi-se embora, as pessoas também e de repente apenas ele e o poeta, ou talvez médico. Olhou-o de frente, quis falar-lhe, perguntar-lhe se a sua espera compensara. Quis ter a certeza se sempre fora de pedra, porque não queria ficar assim, eterno, imóvel, primeiro branco e depois enegrecido pelo tempo. Quis perguntar-lhe se não se cansava de esperar, esperar, esperar, quis muito muito mas não conseguiu, vencido que foi pelo cansaço.
Tantas foram as linhas que aqui escrevi, tantas as palavras, os pensamentos e sentimentos, quem nem sequer me detive um minuto que fosse com as entrelinhas. Com esse pedaço de texto não escrito, capaz de tanto dizer através de letra nenhuma, apenas porque lá, subentendido nos espaços deixados em branco, livres de caligrafia, livres do peso da mensagem. No fundo, aquilo que se diz sem ser preciso dizer. Está lá, basta entender.
É como que o cheiro do texto. O odor. Como que o outro lado do literal. O que está para além de. Lá mais à frente. Existe o sabor, o paladar, o gosto específico e depois, o aroma, a brisa que nos envolve, que nos encaminha e elucida. São as entrelinhas. Quantas vezes mais deliciosas, capazes de viver mesmo que longe de todas as letras e palavras, capazes de permanecer em nós, no fundo, a verdadeira essência da prosa.
Não é fácil ler nas entrelinhas. Nada fácil. É como que entrar no mais íntimo de todos os segredos do escritor, é ler-lhe a alma. Ele que se mascarou de parágrafos, disfarçou-se de poemas, ali, descodificado, transcrito, revelado. Pergunto-me: que aroma é o meu? Depois de tantas linhas que aqui escrevi, tantas palavras, pensamentos e sentimentos. Será que se percebe tudo o que aqui está para além de? Respondo-me: acho que sim. Está cá, basta entender.
A tarde estava já a ir-se embora durante uma noite quando cheguei à rua do Coliseu. Fazia o calor do Verão, mas ainda assim, a cor dominante era o preto. Também algum vermelho, pouco branco. Sobretudo preto. Nas t-shirts, nas calças, nos All-Star e também nos olhos carregados de eyeliner. Eram os códigos de um romance repleto de química. Um amor devoto que nem conhecia, uma devoção incontida, uma explosão de energia num grito que se multiplicou aos milhares, nas gargantas de uma juventude em absoluto delírio.
Confesso que não esperava tanto do concerto dos My Chemical Romance. Não esperava sentir-me nostálgico ao ver tanta gente feliz no primeiro concerto da sua vida – lembrei-me de mim mesmo, com 15 aninhos, em Alvalade, no dia 2 de Julho de 1992 para ver os Guns ‘n’ Roses. Não esperava ver uma banda em plena forma, a deixar tudo em palco como se o último concerto de sempre. Não esperava que as músicas me soassem tão bem ao vivo, chegando mesmo a arrepiar-me em alguns momentos.
Caramba, 15 aninhos, acho que não devia ter feito estas contas à vida. De repente, já nem tanto o espectáculo de ontem à noite, o preto, o eyeliner, mas todos os outros concertos que vi ao longo deste tempo que pura e simplesmente não passou. Ou ainda concerto nenhum. De certeza absoluta que tenho ainda 15 aninhos, vêm aí as férias de Verão e quero passá-las na praia. E talvez este ano os Guns ‘n’ Roses venham cá tocar a Alvalade. Se o fizerem, de certeza que não falto. Já tenho mais que idade para isso.
Sentado na cama já noite dentro, ao som de uma divina Rachel Goswell, procuro as palavras certas para um trabalho que tarda em aparecer feito. Olho em redor e vejo a televisão a tentar cativar-me sem sucesso. Pergunto-me como é possível ninguém conhecer esta voz que me (en)canta, tão fina, tão elegante, ladeada apenas por uma viola solitária e uns arranjos orquestrais que parecem vindos do paraíso. Por quem cantas tu, Rachel? Não te sentes só a cantar para quase ninguém?
Acho que tinha saudades de escrever sentado na cama já noite dentro. Estes são os minutos em que é possível questionar o porquê de todas as coisas, escondido que estou de todas as pessoas. Lembro-me delas, de várias pessoas. Tenho saudades de algumas. Dava tudo para ser quase uma da tarde e eu de férias de Verão, em casa, sem fazer nenhum. À uma da tarde ir para baixo a pé e à minha espera um franguinho na brasa ou uns bifinhos de peru que nunca consegui fazer iguais.
Será que nos vês aí de cima Tóino? Sabias que me fogem umas quantas lágrimas dos olhos sempre que escrevo o teu nome? Não ligues, são as saudades impossíveis. Vês, é por isso que não tenho escrito sentado na cama já noite dentro! Com o mundo parado, comigo parado, ponho-me a contemplar as memórias de tempos perfeitos. Será também por isso que cantas como cantas, Rachel? Acredito sinceramente que sim. E olha, não te sintas só! Eu, pelo menos, adoro ouvir-te!
Quando se despediram naquela noite que ambos interromperam, não sabiam ainda o tamanho desse adeus. Julgavam-no banal, do comprimento dos outros todos que no passado serviram de fronteira entre o tudo e o nada, como se um muro saído dos confins da terra, intransponível a partir desse momento até que um olá salvador a juntá-los de novo. O céu vestira-se de gala em tons de preto e as estrelas estavam também a rigor, mais parecendo pérolas preciosas de tão brilhantes.
As despedidas são o supremo acto de incerteza. Por mais que até amanhã ou até já, podem sempre virar até um dia ou mesmo até sempre. São despedidas, carregadas de adeus e por isso nunca certas, eventualmente definitivas, terrivelmente vagas. São como um mergulho no fundo do mar, falta-lhes o ar, apertam no peito, querem respirar e não podem, falta-lhes o ar, cada vez mais e mais, um sufoco, que sufoco e o ar, nada de ar até que finalmente olá e o alívio de respirar novamente.
Daí que naquela noite que ambos interromperam, banhada a prata pela luz das estrelas, ambos tenham mergulhado sem destino, separados por um muro cego que se ergueu do fundo da terra. Não sabiam o tamanho do adeus que disseram. Julgavam-no apenas mais um, depois de tantos outros. Ignoravam que o supremo acto da incerteza os rachava ao meio, qual trovoada descida dos céus, por mais que até amanhã que já não amanhã, nem mesmo ontem, perdidos que estão no escuro que faz a esta hora... no fundo do mar.
Acho sinceramente que nunca parei para pensar nela. Sei lá, questionar-me como seria e onde estaria. Na mais pura das verdades, nem sequer sabia da sua existência e por isso nada de parar para pensar nela por momento algum. Em vez disso, simplesmente viver na normalidade dos dias sucessivos, carregados de rotina nos sítios de sempre. Quase como se um percurso inevitável, um carreiro obrigatório, sempre às mesmas horas, a todas as horas.
Mas afinal a rua dos sonhos existe! Não, não se encontram lá os faustosos palácios, repletos de riqueza, cercados de abundantes jardins verdes onde pessoas se passeiam felizes no esplendor da sua existência plena. Nem tão pouco se encontram as paisagens perfeitas, com lindas cascatas de água descendo apressadas montanha a baixo criando pequenos arco-íris sempre que o sol as trespassa por completo.
A rua dos sonhos é uma rua como tantas outras. Tem prédios normais, carros normais, pessoas normais. Chegar lá é tão fácil como chegar a qualquer outra rua, também ela, por certo, a dos sonhos de alguém. Afinal, não existe aqui nenhum mistério ou fantasia. Nenhum segredo. Ou talvez exista. O segredo de sonhar, de imaginar a vida para além da aparente inevitabilidade, de ousar sair do carreiro obrigatório, sempre às mesmas horas, a todas as horas.
Chamo-lhe o poeta da rádio. Os seus sinais são também os meus, todas as manhãs antes que o dia me ocupe por completo e adeus tempo para pensar a vida assim, da forma mais simples, mais bela. Gostava de escrever as suas palavras, de ser capaz de sugar o mundo e recriá-lo dessa maneira única. Imagino-o de olhos bem abertos, atento a cada movimento por mais pequeno ou insignificante. Imagino-o depois a correr para o papel pronto a desenhar mais quadro feito de prosa.
Os seus sinais andam por aí, flutuam no ar ao som de uma voz grave e compassada. Uma voz que a cada dia encontra algo de novo para dizer, com o entusiasmo da primeira vez. Uma voz que declama. Que exclama. Uma voz mascarada de imagens, nítidas, profundas, infinitas. É possível sonhar assim, logo de manhã, antes de ser dia outra vez, antes de acordar a sério, antes que o mundo se feche dentro de si, a contemplar o próprio umbigo como se a única maravilha possível.
Apetecia-me viver dentro dos sinais do Fernando Alves. Nem me importava que aquela música a toda a hora. Gostava sinceramente fazer parte dessas palavras, quem sabe ser uma delas. Gostava que os sinais de repente já não apenas sinais, mas a vida em si. Como um poema, uma prosa, uma história tornada bonita durante todo o tempo e não apenas naqueles minutos fugazes, ainda antes de ser dia mais uma vez, inevitavelmente. Quem sabe um dia? Quem sabe...
Chama-se All Lost, tudo perdido e entra-me pelos ouvidos como um hino à beleza ao mesmo tempo que procuro o que resta de mim, por aí espalhado em pequenos pedaços que o tempo não apaga nem consegue. A chuva a bater-me no rosto ao sabor das ondas que me mantêm à tona deste mundo que parece subitamente ter-me virado costas, indo-se embora não sei eu para onde ou porquê. Olho o céu escuro, ameaçador, feito quase noite em pleno dia. Flutuo.
Longe da terra parece não haver tristeza. Penso deixar-me ficar por aqui, embalado como uma criança pequena antes de dormir. Não tenho energia, derreteu-se toda em cada palavra impossível daquela maldita tarde em que os sonhos se evaporaram como a água desta estrada em que caminho já noite feita, no raiar de mais um dia pesado de tão longo. Não existe ninguém que possa compreender-me, este caminho é só meu e tenho de o percorrer sozinho.
Procuro. Vou N vezes ao sítio do costume, chamem-lhe esperança, o que quiserem. Nada. Nem um sinal, uma palavra, zero. Flutuo. Fujo daqui. Nem mais um minuto, quero ir para longe, tenho saudades da chuva a bater-me no rosto, o mundo fugiu, chama-se All Lost, tudo perdido, é maravilhoso, um hino à beleza, nada encontro de mim, talvez já afundado, o céu escuro, não tenho mais energia, malditas palavras impossíveis, tão impossíveis como estas, hoje, agora, neste texto.
Hoje precisava de chegar aqui e escrever tudo aquilo que me atravessa e consome neste momento. Gostava de pegar no peso impossível que me esmaga e triturá-lo todo em pequenas letras que juntas, fariam as palavras deste texto. Poderia ser um texto de mágoa, triste, mas seria um texto e aqui ficaria para o resto dos dias. E todo eu mais leve, aliviado por me sentir de novo livre para voar rumo ao sítio onde se fabricam os sonhos. Julgo que partiria agora mesmo.
Precisava, mas não consigo. Nem quero. Algumas coisas são demasiado especiais para simplesmente deixaram de o ser. Impossível. São como as grandezas do universo, inevitáveis, vivem e fazem viver, são a beleza do mundo e sem elas a vida é insonsa, robótica, cinzenta. Não se resumem a palavras e por isso, texto nenhum me pode valer, porque escasso, incompleto, injusto. Não saberia nunca escrever-me neste momento, sou analfabeto, não sei nada de nada.
Sentado neste pedaço de coisa nenhuma lembro momentos que julguei eternos. Tinha a certeza que os recordaria um dia, daqui a muitos anos, como o princípio de uma felicidade que tardara em chegar. Não hoje. Nem como hoje. Assim dói demais. Não sei nada de nada. Não sei escrever, tudo escasso. Malvado texto que em nada me ajudas e que ainda por cima me pedes que te acabe com a letra de uma que nunca poderia ser a minha música.
And we will only need each other, we'll bleed together, Our hands will not be taught to hold another's, When we're the special two. And we could only see each other, we'll bleed together, These arms will not be taught to need another, 'Cause we were the special two.
Porque terá ele escrito sobre dominós? Imagino-o numa noite de insónias em sua casa, sozinho. Parece que o vejo a vaguear, perdido dentro de si, cheio de vontade de uma conversa, uma companhia. E os dominós, as peças da vida a tombarem inevitáveis, rumo a um fim. Sem retorno. O piano chama-o, repete o seu nome, quer ouvi-lo desabafar toda a dor que o mantém acordado. A lua cheia de luz, de silêncio. Um som de vazio capaz de se ouvir em todo o mundo.
Mais peças a cair e em cada uma, recordações. Escreveu – toda a gente sabe que as memórias nos manterão vivos, não desaparecem simplesmente. E não desaparecem mesmo, são como aqueles velhos relógios de parede, solenes a cada hora que passa, fazendo-se sentir acima de todas as coisas. É assim o grito de um passado que não desaparece, que vive em cada respirar, que acontece em cada gesto, por mais pequeno, por mais insignificante.
Na quietude dos seus passos, imagino-o triste. Não triste, melancólico. Presente demais no presente. Longe do que foi. No fim de todas as peças que caíram mesmo na sua frente. Todo ele recordações. Talvez seja por isso que escreveu sobre dominós e ainda bem que o fez. Por vezes, uma música é o mais belo retrato de um passado que nunca deixou de o ser. Preso a si mesmo, para sempre. Até sempre. Quanto às memórias, não desaparecem simplesmente.