"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
Levantou-se cedo, ainda a manhã era apenas um projecto e lançou-se na escrita de mais um capítulo da história que ultimamente lhe ocupava o tempo. Queria desbravá-la, fazê-la acontecer. Queria saber o que seria de todos os personagens que viviam na imaginação, dependendo dela numa estranha relação de certeza e incerteza. Lá fora tudo triste, de cor cinzenta, quase sem cor, quase sem vida. Parecia chover sem chover.
As vidas a movimentarem-se por entre os seus dedos, acontecendo ao ritmo das suas palavras. A sua vida parada, suspensa no cimo daquela história. A sua vida parte da história e a história parte da sua vida. Levantou-se, queria existir antes de se escrever, queria ser personagem principal, queria viver um final feliz, folhear todas as páginas da sua existência, uma a seguir à outra. Lá fora, nada de diferente, apenas um gato a equilibrar-se no muro de sua casa.
Os gatos são seres curiosos. Deslizam pela vida, ágeis e independentes. Gostam de gostar à sua maneira, quase distante embora quase próxima. Têm vontade própria, como se soubessem sempre o que de melhor há a fazer no instante seguinte. Têm sete vidas. Assim como o escritor, esse inventor de vidas agora quieto, de pé, a observar aquele felino com patas de algodão. Sorriu-lhe e ao mesmo tempo, recordou a pessoa que o ensinara a apreciá-los. Depois sentou-se e voltou a escrever.
É curioso que a maioria dos meus textos se escrevem sozinhos enquanto conduzo. Talvez por ser o único dos momentos em que a minha mente completamente liberta, esvoaçando por pensamentos, sonhos ou memórias. Como hoje de manhã, a caminho do emprego e de repente eu com oito ou nove anos no descampado à frente da Piscina Atlântida numa dessas tardes de todo o tempo do mundo, cheia de sol, de felicidade.
O bicho homem é um ser curioso. Diria mesmo hilariante, quando se trata de tentar captar a atenção de uma mulher. É capaz de tudo, mesmo que tudo do pior. Basta ver um dos documentários de sábado ao meio dia para constatar esta verdade, seja qual for a espécie animal. Eu tinha oito anos e gostava da Clara. Um rosto que já não recordo, uma figura que há muito desapareceu tendo-me deixado apenas o seu nome e esta história que vos passo a contar.
Nós a jogar futebol antes do treino, a Clara a ver, eu fan do karaté kid, a Clara a ver, eu a querer ter o estilo desse prodígio do cinema, a Clara a ver, eu a pedir o lenço de assoar ao meu avô, a Clara a ver, eu a dobrá-lo e a colocá-lo na testa, a Clara a ver, eu feito karaté kid de trazer por casa, a Clara infelizmente, a ver. Eu a chegar ao emprego a rir-me sozinho no carro, recordando esses tempos deliciosos. A Clara algures nesse mundo, sem nunca ter falado sequer comigo. Pudera!
As palavras estão a calar-se. Estão a fechar-se, secretas, ou a fugir-me cobardes. Sinto-lhes o fim a cada dia que passa, inevitável. Já pouco me dizem, desinteressam-me, de tão vazias, tão distantes. Perderam a chama que lhes ardia na alma, incendiando cada frase, cada parágrafo. Secaram. Morreram. Deixaram de se escrever, tornaram-se pesadas, arrastadas. Forçadas. Transformam-se em ponto final, o último de todos, no fim de todas as histórias.
As palavras são como as forças. Esgotam-se. Sinto-me de partida. Não tenho rumo nem planos. Apetece-me o silêncio. A leveza. A liberdade absoluta de simplesmente existir. As memórias continuarão a sê-lo, embora comigo, só comigo. O mundo continuará a girar e eu fascinado a observá-lo na primeira fila. Quero bebê-lo, vivê-lo. Quem sabe depois escrevê-lo. Quem sabe... Por agora, as palavras estão a calar-se. Pouco mais me resta para contar.
Não sei se me estou a despedir, não sei nada. As dúvidas consomem-me, assim como esta incerteza que parece ter tomado definitivamente conta de mim. Resta-me olhar para trás e ver o muito que disse, que escrevi. Muitas vezes nem me reconheço, questiono-me como foi possível aquele texto, como?... Talvez amanhã quando aqui chegar me apeteça escrever, escrever , escrever e me pergunte o porquê de ter feito este texto. Talvez...
Fez-se à estrada com o entusiasmo das crianças que correm felizes e incansáveis nos pátios das suas escolas. As crianças não se cansam, ou então, mais espertas ainda, escolhem meticulosamente as horas a que o fazem. Horas que já não interessam, ou porque já de noite ou porque já nenhuma brincadeira por brincar e então sim, decidem cansar-se, cansar-se muito para depois dormirem tranquilas, na paz de todos os anjos.
Fez-se à estrada sem qualquer certeza, movido apenas a esperança como se mergulhado num daqueles rios em época de monções, repleto de água imparável, célere, decidida rumo à sua foz. Deslizava pelos quilómetros como se num mar de sonhos onde nadava com a energia dos campeões que retiram segundos aos recordes impossíveis, todo ele cheio de medalhas, de pódios, de hinos, de glória.
Fez-se à estrada, vencido, derrotado. Pesado. Focado em cada traço no alcatrão, como se infinitos, como se naquela estrada todos os traços de todas as estradas. Que chato deve ser ter de pintá-lo a todos iguais e equidistantes. Na sua cabeça já nenhum sonho, já nenhum entusiasmo. Apenas a pressa de chegar para que hoje fosse hoje o mais rapidamente possível. É tão mais longe o caminho de regresso...é quase infinito.
O tamanho do teu sorriso não tem tamanho, é como uma caixa de magia onde tudo cabe, bastando tocar-lhe ao de leve para que solte um encanto que tenho saudades de ver. Assim como de ouvir o suave tom da tua voz que mistura uma engraçada combinação de português e francês. Soa bem a tua voz, parece aquelas músicas que tu tão bem sabes cantar, deixando-nos a todos bem dispostos, felizes. Sempre soubeste fazer isso tão bem, sendo apenas tu mesmo.
Tenho saudades de te ver entrar na nossa sala para fumar um cigarro às escondidas na janela. Já para não falar das massagens que às vezes me fazias nos ombros ao mesmo tempo que me dizias jeitoso. Tenho saudades de ti, de me esconder no teu cantinho e sentar-me à tua frente a desabafar os meus problemas. Sei que me ouvias. Sei que querias muito a minha felicidade e também sei que sofreste com o que me aconteceu. Sempre te senti do meu lado, como se família.
Hoje a distância não me deixa ver o teu sorriso nem ouvir a tua voz. Nem me deixa estar perto de ti, para te olhar firme nos olhos e dizer-te vai tudo correr bem, logo logo vais estar a fumar o teu cigarro às escondidas na janela e a cantar o papel principal no telefone da Pipa sem te saberes em alta voz. Sabes Cristina, não estás sozinha nisto. Além dos amores da tua vida – imagino-os enormes, tens aqueles que te adoram, que te sentem como família e que precisam do teu sorriso para sorrir também.
Talvez porque hoje a noite serrada, talvez porque a chuva incansável, é possível ver na estrada reflectidos todos os pontos de luz que suspensos no ar, como se um enorme espelho rasgado à minha passagem apressada. É tarde. Ouço ainda o som estridente da felicidade, como se um eco presente no meu interior, rasgando-me de alto a baixo, tal e qual eu faço com este reflexo por debaixo de mim, transformado num plural à medida que o deixo para trás, para sempre. Nunca mais o verei.
O passado. Presente. Ali, como se o tempo não tivesse sido tempo. Um futuro impossível mascarado de momento, mas apenas isso. Estranho. As pessoas sorriem-me com uma ironia que desconhecem. Quero fugir. Não posso. Estou cansado sem que ninguém perceba, digo-lhes que sim gritando-lhes que não enquanto vou assistindo à parada da alegria. Os minutos demoram horas a passar, eu a contá-los para voltar a ser apenas eu, tenho saudades de mim, quero reencontrar-me comigo.
Acelero. Vou pisar a lua que caminha para cheia, meio escondida por entre as nuvens que não param de chover. Acho piada à água que cai no vidro da frente e que é varrida, atirada para o chão, onde se junta à outra que lá repousa. Estou quase a chegar. Será que me espero? A lua já lá vai. O passado. Presente. Os sorrisos. Tantos. Eu a gritar calado. Estarei a fugir? Não sei responder. Por fim paro. Saio, olho para baixo e vejo-me reflectido...sou de novo eu. É tarde. Corro para casa. Amanhã, felizmente, é amanhã.
Comecei por reparar em ti ao ver-te pedalar sozinho na sala das bicicletas mas foi apenas isso, um reparar e não te liguei muito mais, preocupado que estava em fazer a minha natação. Gosto de nadar. A cada braçada parece que me revejo na mítica piscina Atlântida no Estoril, onde passava todos os fins de tarde do antigamente, ao mesmo tempo que o meu vô Tóino vasculhava cá fora todos os arbustos à procura de bolas de ténis perdidas para me oferecer...
...saudades...
Depois percebi que continuavas a pedalar cheio de entusiasmo enquanto eu começava a ter de parar mais e mais já que o cansaço não perdoa e afinal, longe vão os tempos do antigamente em que aspirava a ser campeão de mariposa. Mas porquê sozinho? Mais umas piscinas e novamente as recordações desses tempos gloriosos de tão felizes, eu lá dentro a lutar contra o cronómetro, o meu vô Tóino cá fora a lutar contra os arbustos...
...saudades...
Finalmente notei que a tua perna esquerda fazia um movimento diferente de todas as outras pernas esquerdas a pedalar e reparei também que te levantaste cheio de dificuldade, apoiado nas tuas muletas e reparei que afinal quase nem forças nas pernas e pensei como é possível conseguires sequer pedalar e pensei na sorte que sempre tive e lembrei-me que afinal nunca fui campeão de mariposa mas tive a certeza absoluta que tu já és um campeão da vida! Campeão...era assim que chamávamos ao vô Tóino...
Perdi-me na noite com a esperança de te encontrar. Caminhei estrada fora, iluminado por uma lua tão cheia como a minha alma onde contemplei a tua beleza, qual reflexo. Sorri. Tu emprestas encanto ao mundo. Por onde passas há uma flor que nasce, um pássaro que canta, um brilho que acontece. És como as grandezas infinitas. Como as forças impossíveis.
Não és deste mundo, não és como nós. Levitas ligeira, leve. És um sopro do divino. Espalhas-te no ar que respiro, fazendo de cada paisagem uma obra prima de um iluminado. Voltando à estrada, caminho, anseio por chegar. Chego. Espero. Deixo-me cair na falésia dos sonhos, mergulho nesse oceano de perfeição banhado pela tua presença.
É fresca e cristalina a tua água. É pura. Bela. Seria capaz de lá nadar todos os meus dias, livre do mundo. Acordo. Volto a mim. Estou de novo na estrada. A lua sorri-me. Desconfio que és tu a dizer-me boa noite, lá nesse sitio onde a tua magia repousa. Sorrio-te de volta e digo-te descansa. Dorme bem. Mas antes de dormir, só mais uma coisa: hoje estás mais bela do que nunca.
Julgo que o mundo cabe inteiro nesses passos vagarosos que dão. Pelo menos, o meu mundo. Todo ele por essa estrada fora, convertido numa vontade tão grande que nem dor, nem cansaço. É como uma entrega, uma confiança. Ou então um agradecimento, devoto e sincero. É a caminhada das vossas vidas e de todas as vidas que vivem em vocês. São os passos vagarosos que mais longe chegam, até ao infinito se preciso, porque limite nenhum vos parará nem hoje, nem amanhã.
Imagino os campos a arranjarem-se para acolher a vossa passagem, as ervas a pintarem-se de um verde mais intenso, as papoilas a sacudir o pó das suas pétalas para que mais vermelhas do que nunca. Imagino as joaninhas numa azáfama, a dançar à vossa volta, radiantes por vos reencontrar. Imagino um enorme silêncio capaz de se ouvir aqui, agora, onde escrevo estas palavras que vos quero dedicar. Paro um pouco e sim, de repente também estou aí, no meio de vós, a caminhar...caminhar...
Vão. Percorram as estradas que vos aguardam. Sejam testemunhos de um querer inabalável, os portadores da esperança que vence o qualquer desânimo. Levem-me nos vossos passos vagarosos e quando chegarem à tal recta que parece não acabar nunca, lembrem-se da beleza que deixaram para trás, lembrem-se de todos quantos vos sorriram à vossa passagem e no silencio da fé que vos guia, inspirem fundo e sintam da felicidade de mais uma vez terem conseguido.
Não faço ideia quantos carros terão passado naquela noite, por certo umas largas centenas, todos eles com pressa de fim de semana, se calhar cansados uns dos outros, sedentos de parar e descansar. Eu ali parado, a não reparar neles, embora consciente da sua passagem. Eu se calhar a desejá-los todos paralisados, sinónimo de um tempo suspenso, permitindo-me prolongar a felicidade que naquele momento percorria toda a minha existência.
Durante a noite fica mais fácil pensar naquilo que de fácil muito pouco ou quase nada, nada mesmo. Talvez porque seja possível ver melhor, mais nítido, sobretudo mais focado, já que focado apenas no que interessa, sem distracções nem ilusões. A realidade aparece inteirinha, sem rodeios e faz-se sentir, firme, convicta, real. Neste momento, parece que estou a ver tudo ao não ver aquilo que mais queria ver. Por isso penso, tento recordar, faço contas e digo:
Não faço ideia quantos carros terão passado naquela noite, por certo umas largas centenas. Nessa altura como agora, tudo era nítido, eu pelo menos não tinha qualquer dúvida, mergulhado que estava num desses momentos de eternidade total. Podia ter durado toda a vida. Devia. Assim como deviam ter parado todos quantos passaram apressados rumo a um fim de semana que chegou muito mais rápido do que devia… já lá vão mais de duas semanas…