"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
Caro António – permita-me que o trate assim, eu sei que não me conhece de lado nenhum, que nunca ouviu falar de mim, mas deixe-me tratá-lo assim e dizer-lhe umas quantas coisas. Primeiro gostava que soubesse que o leio todas as quintas feiras de quinze em quinze dias e confesso que estranhei a sua ausência na semana passada. Depois esqueci. Julguei-o todo atarefado em compromissos e por isso nada de crónica. Não me chateei consigo mas as suas palavras fizeram-me falta, confesso-lhe!
Depois, gostava que soubesse que já li os seus três livros de crónicas e que os adorei. Sim, eu sei que não gosta muito deste género de escrita, já o ouvi dizer isso numa entrevista de rádio, mas a verdade é que eu adoro lê-las e transpô-las para a minha própria vida, como se as suas palavras legitimassem as coisas que me acontecem. Como se o António tivesse ido na frente, para ver primeiro como são as coisas. Como se viver de facto fosse aquilo que acontece nos seus textos. Entende? Depois, é só uma questão de nos adaptarmos.
Caro António, hoje voltei a lê-lo e pela primeira vez não gostei nada. Aliás, ainda estou meio sem acreditar. Você? Não pode ser verdade! E depois a sua capacidade de transformar um momento terrivelmente difícil numa crónica maravilhosa... Você hoje trocou-me as voltas, eu a achar que vinha aí mais um episódio do quotidiano, eu a pensar como me encaixaria no seu texto e você resolve dar-me uma lição de vida. Leu bem, de vida. Tem toda a razão em agradecer ao Senhor por haver futuro para alguém. Começando por si. Não desista! Peço-lhe!
Foram dois sorrisos no mesmo dia. Dois sorrisos que me entraram alma a dentro, talvez por tão inesperados. Um deles, adornado por dois lindos olhos azuis, penetrantes, fundos. Dois lindos olhos que me escolheram por alguma razão que desconheço, já que apenas passava de carro, apressado para o trabalho. Posso nunca vir a saber o nome daquela pequena criança que me sorriu e acenou adeus, mas não esquecerei os seus divertidos caracóis e a beleza do seu rosto. Nem a alegria daquele gesto que me apressei a retribuir.
Foram dois sorrisos no mesmo dia. O outro, também ele inusitado. Também ele infantil. Eu novamente no meu carro, mas desta vez apressado em ultrapassar quem me impedia de ter pressa. Ela no banco de trás a olhar-me desconfiada, provavelmente sem perceber a minha agitação. Eu queria chegar rápido a casa, mas não lhe resisti e comecei a fazer-lhe caretas. Uma depois da outra, uma provavelmente mais feia do que a outra, ou então (aos olhos dela) divertida – espero que divertida.
Arranquei-lhe um sorriso. E outro. Foram talvez uns quinze segundos de empatia até que aquela criança me tenha acenado um adeus no cruzamento que nos separou. Acenei-lhe de volta e fui nas calmas para casa, reconfortado por um sorriso genuíno e terno. Foi um dia diferente. Com aqueles gestos tão simples, puros e inocentes, aquelas duas pequenas criaturas conseguiram-me fazer sentir especial. Por isso aqui lhes agradeço. Apareçam mais vezes.
Olha para a estrelas. Olha como elas brilham para ti. E para tudo aquilo que fazes. Sim, elas eram todas amarelas. Eu apareci e escrevi não uma canção, mas um texto para ti. A praia, ainda escura, desejosa de receber a manhã que se aproxima veloz e ele, caminhando só sobre a areia, cantando a canção que não escrevi, mas embalando uma noite em que o sonho venceu a realidade.
A luz foi chegando devagar, tímida, talvez trazida pelas ondas do mar que se fizeram ouvir ao mesmo tempo que foram apagando as pegadas deixadas pelo cantor da canção que não escrevi. As palavras do meu texto, todas espalhadas pelo ar e olha como brilham, como brilham para ti, já não as palavras, mas as estrelas, todas amarelas, lá bem no topo do mundo.
Depois desenhei uma linha, uma linha para ti, que coisa para se fazer, era amarela, da cor da areia da praia onde o cantor da canção que não escrevi já desapareceu. Ficam as palavras, estas palavras, eternas demais para serem apagadas. Ficam as palavras gravadas no interior de uma noite em que o sonho venceu a realidade. Olha para as estrelas. Olha como elas brilham para ti. E para tudo aquilo que fazes.
Começou por analisar a espessura do papel com a minúcia de um ourives, tocando-lhe com carinho, amor, deixando os dedos percorrer toda a sua extensão, sentindo-lhe a alma. Depois começou a sua obra, a arte de dobrar cada pedaço com todo o cuidado, em gestos decididos e cúmplices. Gestos profundamente sentidos, gestos eternos, de uma vida. Novo vinco e um sorriso seguido daquele sentimento pleno de quem sempre esperou por aquele momento.
De facto assim fora. Quantas folhas lhe passaram pelas mãos sem aquele toque mágico que acabara de sentir. Umas mais rugosas, quase ásperas, outras tão finas e frágeis. Folhas de um papel por certo importante, mas não o principal da sua vida. Aquela não. Aquela era diferente e ele soube-o desde o primeiro instante. Daí o cuidado em cada um dos seus movimentos. Sabia exactamente o que tinha de fazer e nada nem ninguém o desviariam do seu objectivo.
No fim de todos os vincos, deteve-se durante largos minutos a contemplar o esplendor do barco de papel que acabara de construir. Estava perfeito. Seria capaz de embarcar nele para ir até ao fim do mundo, imaginou-se na sua proa sentindo a suave brisa matinal. Olhou-o de novo e soube chegado o momento. Pegou no barco com todo o cuidado, dirigiu-se para o leito do rio que corria perto de sua casa e colocou-o a flutuar. Ao vê-lo lentamente afastar-se, deixou escapar uma lágrima ao mesmo tempo que foi incapaz de dizer a palavra adeus.
Na mentira de uma noite perdida no meio da escuridão o som da sua alma uivava ao relento, gritava as palavras da solidão num silêncio capaz de esmagar a lua em finos grãos de areia a chover como estrelas sobre o mundo do descontentamento. Na mentira de uma verdade escondida, cravada nos suspiros sucessivos de uma hora que não chega, vive um sonho no seu leito de morte, já fraco, asfixiado por uma realidade cruel, castradora de sorrisos.
Na mentira dos dias cravejados de luz rasgam-se feridas de esperança, cicatrizes de desencanto que se cravam para sempre numa pele fustigada, gasta pela vida que se escapa por entre os dedos, que lhe foge traiçoeira, cobarde. Na mentira de uma verdade escondida, encurralada por esse muro de impossibilidade, escorrem lágrimas que se esmagam no chão com o peso de todos os pesos, com a força de todas as forças.
Na mentira de mentir à própria verdade, restam as gotas de tempo que se juntam num mar de esquecimento, fica um vazio cheio de nada, gasto pelas palavras do silêncio de uma alma perdida na eternidade de si mesma, nessa profundidade de que é feita. Na verdade de mentir à mentira, sobro eu, qual suave brisa de vida pronta a voar, fazendo brilhar as estrelas que por agora se espalham mundo fora, feitas finos grãos de areia.
Ando às voltas com uma frase para um Banco. Uma frase apenas que me consome durante horas. Uma frase que me ocupa a cabeça por... não existir. Ou então existe – eu sei que existe, mas eu não a encontro por mais que procure. Vou gastando minutos a escrever frases parecidas à que quero, mas nunca a que quero. Essa vai-se divertindo a escapar-se-me. Mais uma tentativa e não, ainda não é isto. Ainda não és tu. Cumpres, és engraçadinha, mas não és “a” frase. Consomes-me, sabias?
Uma frase que só é minha durante instantes. Acho que só minha enquanto não a encontro. Depois será do Banco, será a sua voz, a sua identidade e eu completamente esquecido, ignorado. Eu, que gastei tantas horas e esculpir esse pedaço de comunicação, eu que devia ser o artista, a vedeta, completamente posto de parte e o Banco ali todo contente a exibir a minha frase, como se sua desde sempre. Com que direito? Não é justo meus senhores, não é justo.
E depois ir na rua, com a família ou com os amigos, passar pelo Banco e dizer-lhes todo orgulhoso, fui eu que fiz aquela frase. As pessoas a olhar e a dizerem-me giro, está giro, sem desconfiarem das horas atrás de cada letra, sem saberem das voltas e mais voltas que tive de dar para chegar ali. Aos olhos delas, uma frase, apenas uma frase. Malvada frase. Aparece de uma vez! Tenho mais do que fazer. Se não fosses tu, se calhar podia ter feito, por exemplo, um texto como deve de ser para o meu blog.
Lá em cima, as nuvens parecem dançar criando coreografias belas de tão inesperadas, correm pelo céu se calhar à procura do local para desaparecerem, para deixarem de ser, de existir. Talvez seja um ritual de despedida, um sorriso divino. Talvez. Sei que as olho atentamente, gosto de ver as suas formas e nas suas formas imaginar outra formas. Pergunto-me para onde vão, porque me fogem da vista. Não vão já! Não tenham pressa que pressa tenho eu, o relógio esmaga-me e empurra-me para o sitio do costume, longe de vocês.
Cá em baixo, uma fotografia. Uma singela fotografia. Rostos que nunca vi e que nunca mais vou ver. Pessoas que por algum motivo fugiram para o sítio onde as nuvens por certo se desfazem. À passagem pela rua da funerária desejo sempre que não haja fotografia nenhuma na sua porta. Sorrio quando não há. A morte faz-me uma confusão dos diabos, não a entendo, acho-a se calhar demasiado eterna, demasiado inevitável. Demasiado paciente. Solitária. Escura. Grande demais em comparação com estes pequenos suspiros de vida que todos ocupamos.
Cá em baixo, uma fotografia. Hoje não sorri. Alguém que a esta hora, acredito eu, provavelmente já conhece o segredo das nuvens que dançam lá em cima. Alguém que flutua junto com elas, observando este mundo apressado e esquecido de si mesmo, tão ocupado que nem repara nas suas bonitas coreografias. No sorriso divino. Malvado relógio, logo hoje me havia de empurrar, tão atento que eu estava a vocês. Às vossas formas. Sou capaz de jurar que estava a ver uma cara. Talvez uma fotografia. Talvez. Uma fotografia que espero, amanhã, não encontrar em porta nenhuma.
Sei que vou chegar e que todos me vão sorrir, como se desejassem ardentemente a minha presença, como se eu fosse o catalizador para que tudo corra bem, para que o divertimento seja absoluto, total. Estou cansada de mais um dia difícil de trabalho, não se nota no meu rosto já que nasci com esta espécie de brilho que tudo ajuda a disfarçar, mas estou verdadeiramente cansada, apetece-me dormir e só acordar segunda feira. Apetece-me hibernar do mundo, esquecê-lo durante instantes.
Olho-te nos olhos e gostava de saber o que sentes. Quem és tu depois de tantos anos? Serás a mesma pessoa? Porque vieste? Não sei se gosto que venhas, ou se preferia que ficasses em casa. Sei que estás aqui depois de todos estes anos. Estou cansada, malvados clientes, parecem tirar o dia – tiram todos os dias, para me chatear. Não sei o que te dizer. Contas-me histórias de circunstancia, o teu trabalho, a tua casa, a tua família, o costume. Dentro dessas palavras nada é claro. Nada é nítido.
As pessoas rodeiam-me. Sorriem-me tal e qual eu imaginava que o fizessem. Sinto-me esmagada por todas elas, sinto o peso que cada minuto a passar por mim, sinto o meu brilho natural a iluminar as pessoas, vejo-te aí, as tuas palavras e só me apetecia fugir. O tempo passou e agora é uma chatice porque olho para trás e tudo é longe demais. Tudo fica lá tão atrás que não sei sequer o que pensar hoje. Sorrio. Afinal é isso que esperam de mim e não estou aqui para contrariar ninguém. E tu, que fazes aqui?