"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
O seu jardim era porventura o mais belo de todo o bairro. Também o mais pequeno, mas isso não a chateava nada. Para ela, o mais importante era cuidar das poucas flores que lá cresciam viçosas e coloridas. Cada uma tinha o seu nome, a sua personalidade e todas as manhãs, lá estava ela de regador em punho a dar-lhes de beber ao mesmo tempo que mantinha animadas conversas particulares, sobre os mais variados temas. Era possível sentir-lhe a felicidade nesses momentos cúmplices.
Eram as suas amigas, como lhes chamava. E gostava delas como tal. Gostava delas verdadeiramente, do fundo do seu coração. Nem sequer lhe fazia confusão ver outros jardins, maiores, com mais flores. Confusão, e muita, fazia-lhe ver algumas dessas flores deixadas ao abandono, quase murchas, quase mortas de tão esquecidas. Com certeza que não eram regadas nem escutadas. Eram apenas existências do passado deixadas ao abandono neste presente cruel. Para si, eram amizades perdidas no tempo.
Certo dia, uma das suas flores disse-lhe ao ouvido que ia para outro jardim. Circunstancias da vida. Algo de inevitável. O seu peito sentiu um aperto grande e os seus olhos queriam chorar. No entanto, a flor sorria-lhe. E à pergunta, porque sorris tu, respondeu-lhe, somos amigas lembras-te? a nossa amizade não acaba nunca! eu digo-te para onde vou e tu passas lá sempre que puderes com o teu regador, pode ser? quero continuar a ouvir as tuas histórias e nada entre nós vai mudar, certo? apenas vou estar noutro jardim, mas o meu coração estará sempre contigo!
De repente ficou tarde. Olho para o relógio e pergunto-me como foi possível ter chegado a esta hora. Não sei onde se meteu o tempo, por onde ele passou. O espelho olha-me de ar sério. Fujo dele, não me apetecem olhares nem interrogações. Há pouca luz na noite. Ou pouca noite na luz. Apetece-me falar, mais do que escrever. Por isso estou a falar e não a escrever. Sou eu que estou aqui, nestas palavras tardias enquanto todos dormem e alguns sonham. Será que sonham?
Invejo-os. Porque não durmo. Porque não sonho. Porque vivo na parte de dentro de uma realidade que por vezes me aperta demais. Estou demasiado acordado. A nitidez assusta-me, tenho vontade de fugir, de correr o mundo e descobri-lo ao mesmo tempo que o vento corre na rua, à procura de uma companhia que por certo não encontra. E grita, lamenta-se, chama por alguém que o abrace, que o aqueça. Também ele vê o tempo a passar por ele assim como ele passa por todo o lado. Sozinho.
Pergunto: o que será que existe para lá do pouco que vejo? Gostava de falar com todos os que agora dormem e sonham, felizes. Imagino-os de olhos fechados ao mesmo tempo esboçam um sorriso que desconhecem. Na impossibilidade de o fazer, vou calar estas palavras com que vos falo, vou apagar a pouca luz que me resta e passar por esse esconderijo secreto por onde fujo até amanhã. Ouço de novo o vento, veio despedir-se de mim. É que eu, melhor do que ninguém, conheço a sua linguagem...
Carolina é o ti-ti que te está a escrever. Sim eu sei que ainda não sabes ler, mas eu não me importo e pode ser que daqui a uns aninhos venhas a achar alguma piada a estas palavras que aqui te dedico. Por falar em aninhos, hoje fazes quatro, que idade bonita! O teu mundo é maravilhoso, repleto de possibilidades, feito só daquilo que queres, cheio de cores e fantasias nas quais gosto de acreditar sempre que estou contigo. E sim, claro que conseguimos construir um castelo de areia no teu quarto que chegou até ao céu! Deu trabalho, mas estava lindo!!
Também te queria dizer que adorei o passeio que demos no teu comboio de peluches. Estou desejoso de repetir. Sei que terei de esperar, porque agora andas atarefada com a tua festinha de aniversário. Tens montes de coisas para tratar, nomeadamente acabar os desenhos que queres distribuir pelos convidados e garantir que tudo vai estar impecável para receberes o teu melhor amigo: o Mickey! Tenho a certeza que o Poo não se chateia que eu diga isto, ele sabe que também gostas muito dele, mas o Mickey é o Mickey!
Eu mesmo não me chateio nada que tenhas tantos e tão bons amiguinhos. Sabes porquê? Porque sei que também gostas muito do teu ti-ti! Sinto isso mal entro na tua casa – mesmo que primeiro me fujas, na verdade absoluta do teu olhar envergonhado, na forma como me disputas e me pedes que vá brincar contigo para o teu quarto. E eu vou todo contente. Sabe tão bem ser assim amado. Ser assim querido. Faço ideia… o Mickey deve andar todo feliz. Eu, pelo menos, quando saio de ao pé de ti, estou feliz até ao céu. Tal como o nosso castelo de areia.
Passava os dias sentado à sua frente. Os dois ali, como se um corpo único, uno, indivisível. Tocava-lhe com uma delicadeza sublime, sentindo-lhe a energia na ponta dos seus dedos e deixando-a percorrer todo o seu corpo, toda a sua existência. Alimentava-se dessa busca. Uma busca que todos os dias o motivava a sentar-se de novo naquele banco e a tocar-lhe como se a primeira vez, aquela emoção, aquele nervoso renovado, aquele tremor, aquele sentimento que a ninguém conseguia explicar por palavras. Sempre tão escassas...
Cada tecla do seu piano funcionava para si como um fragmento de uma história maior, eternamente inacabada, em permanente afinação. Uma história que procurava compor experimentando novas sequencias de toques, sendo que cada toque era algo que lhe saía da alma com o fervor dos apaixonados, cortando-lhe o ar ao mesmo tempo que lhe disparava o coração. O seu medo não era falhar. Nada disso. Gostava das sequencias que os seus dedos lhe propunham, mas dentro si, algo lhe dizia que a perfeição estava ainda por se fazer ouvir.
E queria ouvi-la. Queria senti-la, tocar-lhe tocando-a. Sabia-a ali mesmo, escondida algures por debaixo daquelas teclas brancas e pretas a brilhar com a luz do dia. Parou um instante. Deixou-se ficar quieto, sereno. Fechou os olhos. Imaginou. Viu. Viu com toda a nitidez a imagem da perfeição tal como a entendia. Como a sonhava. Um rosto, um sorriso, uma melodia. Encostou de novo os dedos no seu piano e deixou-os ir, sozinhos. Os seus olhos continuavam fechados, já que a via tão bem. E eles foram. Os seus dedos. Voaram. Nesse dia, tocaram a perfeição.
No monte das ironias, repousam os sorrisos cínicos dos que fazem não acontecer, ali escondidos do mundo, dedicados ao desencontro, felizes com a infelicidade, alheios à dor, cobardes, empenhados em produzir suspiros de desencanto. Passam assim as suas horas, para que outros passem horas nenhumas. Vivem da não vivência. Alimentam-se assim, saboreando todos os momentos que não o são ou que poderiam ter sido.
No monte das ironias existem enormes armazéns secretos, com prateleiras gigantescas repletas de quases, de adeuses, de nãos que uma vez sonharam ser sins. Palavras empilhadas, poeirentas, esquecidas, frases inteiras por dizer, condenadas a não o ser. Existe também um armário cheio de relógios enfeitiçados, daqueles onde o tempo corre ao contrario do tempo, apressando despedidas, adiando reencontros.
No monte das ironias vive a esperança feita prisioneira, acorrentada numa fria e escura catacumba. Passando os dias a espreitar por essa nesga de luz que lhe entra cela a dentro. Vendo as pessoas passar, gritando-lhes o mais que pode, com o pouco que pode. Sem que a ouçam. Sem que a libertem, vigiada que está por todos aqueles que sorriem e sopram. Cínicos. Ridículos por não saberem nunca o que é viver o melhor da vida. Ironicamente.
É um género de ardor que se espalha por igual pelo meu corpo cansado, talvez não um ardor, antes uma nuvem, sim uma nuvem grande e espessa, cinzenta, a atravessar-me de fio a pavio nesta manhã triste sem sol. Os passos pesam-me e não só os passos, todos os movimentos se arrastam, assim como os pensamentos, as ideias, os olhos, eu por inteiro. Encoberto, e de repente, a chover torrencialmente, criando finas correntes de água que escorrem, velozes, pelos caminhos que percorro.
Estradas escorregadias, caminhos labirínticos que fintam um destino em linha recta, passos nem sempre certos, tropeções inesperados, um género de prostração latente, como se uma enorme teia de aranha a tolher os movimentos de um corpo cansado, derrotado por uma nuvem grande e espessa. Uma nuvem que chegou sem aviso, cinzenta, ameaçadora. Começa de novo a pingar. Sinto-o na pele, primeiro aqui, depois ali, e ali. Será que nova chuvada, novos fios de água a atravessarem-me como se eu igual a nada?
Não. Desta vez não. São pingos de melodia. Pingos que me inundam, assim como a este quarto até agora vazio. Vislumbro um raio de sol. Outro. A melhor coisa que nunca tiveste. Que música, meu Deus! Butch Walker. Um génio. O ardor que não era bem ardor deixa de arder apesar de nunca ter ardido verdadeiramente. E a nuvem, sim a nuvem. Não. A nuvem já não o é. Agora sol, a estrada toda ela aderente, numa linha recta que afinal se escondia mesmo depois dessa curva que era mais fechada do que eu imaginava.
Quando o telefone finalmente tocou ele já recebera o galardão máximo para melhor realizador, numa cerimónia simples sem passadeira vermelha nem gente cheia de nada mascarada de tudo, apenas ele naquele púlpito a agradecer aquela estatueta a público nenhum. Não levava qualquer discurso nem sequer agradeceu a ninguém em especial. Apenas um obrigado a todos e pouco mais. Talvez tivessem sido os nervos a impedi-lo de brilhar naquele momento tão especial para a sua carreira.
O filme em si, uma história de encontros e desencontros, um guião mutante, camaleónico, capaz de mudanças bruscas, agora uma coisa, depois já outra, a seguir outra ainda, numa sucessão de cenários e realidades que convenceu os mais consagrados de todos os júris. Um história feita de visões, de possibilidades para um mesmo instante que ironicamente, escapava ao personagem principal. Uma verdadeira teia de construções de derrocadas mentais para uma verdade que tardava em aparecer.
Finda a cerimónia pegou em si mesmo e nem lhe apeteceu ir celebrar. Dirigiu-se para casa na companhia da sua estatueta, iluminado pelas luzes dos carros que se cruzavam com o seu. Era tarde quando chegou. Já passava da meia noite. Subiu os degraus das escadas e deixou-se cair na cama, cansado. Foi então que o telefone finalmente tocou. Depois de toda a noite. Atendeu. Fazia sentido. Finalmente a explicação lógica. Foi então que percebeu que o seu talento para o cinema era algo que devia levar mais a sério.
Há dias em que as palavras se calam Decidem que não falam Ficam mudas, dentro de um texto Sem qualquer pretexto Silenciam emoções Apertam corações São palavras não faladas Vidas paradas São gritos por gritar É amor por amar São palavras que se calam Que não falam Como hoje neste texto Cadê o pretexto? Acho que não o conheço Ou então não o mereço Sei o que quero escrever Só não sei como o fazer Gostava de um poema Tu serias o tema Ou então uma canção Daquelas do coração Uma bela história Da nossa memória Um conto Que tonto Vou parar de escrever Já que não sei como dizer As palavras que se calaram E que dentro de mim ficaram
Sentado nesta velha cadeira de baloiço, leio o jornal que me trouxeram ao mesmo tempo que fumo este cachimbo do qual nunca me consegui separar. Uma vida inteira a puxá-lo para dentro de mim, como se fonte de juventude, como se o segredo para uma eternidade da qual não vou fazer parte. As notícias gritam-me em silêncio. Olho-as sem interesse. As fotografias de caras que desconheço parecem sempre iguais, também não me interessam. Estou longe. Muito longe.
Sentado nesta velha cadeira de baloiço, deixo-me embalar num sono que me rouba horas de sol no meu rosto envelhecido de vida. Depois acordo, volto a pegar no jornal e rapidamente constato que nada mudou. Por mais que eu ande para a frente e para trás, para a frente e para trás, há coisas que nunca mudarão, qual destino, sempre tão irreversível, tão certo. Eu sei que se calhar sentado não vou a lado nenhum, mas será que vale a pena levantar-me? Estou longe. Muito longe.
Sentado nesta velha cadeira de baloiço, deixo-me levar pelas imagens de mim mesmo, lá longe onde estou agora, sentado numa velha cadeira de baloiço, com outra velha cadeira de baloiço a meu lado onde estarias tu a dizer-me coisas que se calhar eu nem ouvia. Mas estavas lá. Tinhas estado toda a vida. E que bem que eu me sinto, lá longe. Porque aqui, tudo o que me resta é este cachimbo que não me inspira grande coisa e um jornal cheio de noticias que me gritam, gritam, repleto de fotografias de pessoas que nada me dizem.
Desviaste-te do meu carro mesmo à ultima da hora, foi uma questão de alguns centímetros. Mais uma fracção de segundo e já não haveria texto para escrever, ou então haveria na mesma, mas de certeza muito mais triste. Andavas pelo ar a divertir-te, julgo que a dançar alegremente, quando passei por ti. Eras branca, julgo que de seda – não pude tocar-te, eras graciosa, eras esplêndida e parecias-me extremamente feliz. Foi essa a sensação que me deixaste.
Mas deixaste-me mais qualquer coisa... sabias? Deixaste-me a pensar. Na tua vida frágil mas ao mesmo tempo tão bela. Deixaste-me a pensar nos velhos tempos quando eu ia mais o meu irmão tentar caçar-vos com o camaroeiro do meu avô. Deixaste-me mergulhado nessas memórias feitas de dias enormes, cheios de tempo para ser feliz durante todo o tempo. Deixaste-me encantado com a tua dança. Deixaste-me feliz por te teres conseguido desviar do meu carro.
As borboletas são emissárias de beleza. Julgo que nos aparecem pela frente para nos fazer sorrir e é a isso que dedicam a sua vida. São graciosas, finas, elegantes. São a personificação da vida, tão mágica mas tão curta. Daí este texto, para te fazer justiça, agora que por certo já não existes. Mas existes. Vives em mim nesta doce recordação daquele momento em que voaste na minha frente e me deixaste deslumbrado com a tua dança. Obrigado por teres existido!