"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
Já não sei quando foi que te vi, entretanto o tempo desatou a passar entre nós e de repente perdi-te, sumiste-me da frente e agora por mais que te procure, não te consigo encontrar em lado nenhum. Não sei se te escondes, se foges, ou se simplesmente me perdeste também a mim e esta hora tu a procurares-me em todo o lado só que de mim nem um sinal, nada, eu invisível ao teus olhos, à tua vida, eu desaparecido assim como tu, desaparecida.
Já não sei quando foi que te vi, sei que me lembro de ti como se tivesse sido agora mesmo, lembro com toda a nitidez, o rosto, o sorriso e a falta dele, o brilho fundo de uns olhos gastos de tanta dor, lembro um corpo caído, vergado a um cansaço pesado, esmagador, lembro uma luz, ténue mas luz, a vir de dentro de ti apontando para o futuro, iluminando-o de esperança, de fé, lembro uma força tremenda, mais forte do que as forças do universo todas juntas, uma determinação, uma vontade, lembro...
Já não sei quando foi que te vi, entretanto o tempo desatou a passar entre nós e de repente já passaram vinte dias, uma quantidade estúpida de horas e então de minutos nem se fala, tempo vazio de ti, carregado de uma saudade que cresce em cada um desses minutos de que nem quero falar, tempo lento, parado. Não sei se te escondes, se foges, ou se simplesmente me perdeste também a mim. Sei que isto assim, tem muito menos piada.
Serão as mais feias de todas a bolachas. Redondas, com um género de rebordo à volta, alguns furinhos espalhados no seu interior e no meio a palavra que lhes dá nome há uma quantidade de anos que desconheço – Maria. O sabor em si também não é nada do outro mundo, não há cá recheios secretos, nada disso. Mas para mim, o seu maior problema é a impossibilidade de se comer uma só. Mesmo que seja essa a intenção, a verdade é que há sempre uma a seguir à outra.
Neste preciso momento tenho um pacote ao meu lado a desafiar-me. Desconfio que se ri da minha fraqueza, goza com a minha incapacidade para lhe dizer não e arrumá-lo de vez num sitio secreto, longe da vista. _________________________ ____________________________________________________________________ ____________________________________________________________________ ____________________________________________________________________.
Peço desculpa, mas sempre me disseram para não falar de boca cheia. E vai mais uma. Continuo a perder esta luta desigual. Malvadas Marias. Adoradas Marias. Viciantes Marias. Lembro-me delas todas empilhadas num frasco de vidro, arrumado no armário que fica por cima do lava-louças da casa dos meus avós. Que saudades. Acho que cada bolacha que como é um pedaço de saudade que mato. Por isso não me levem a mal, mas vou acabar com este pacote. _______________ _________________________________________________________________...
Sentada aqui neste sofá estranhamente grande, desconfortável de tão vazio, de tão preto, de tão frio, imagino-te todos os passos, conheço-te todos os passos, os movimentos que fazes e os que deixas de fazer, conheço-te as horas certas para existires, os sítios que ocupas contigo mesmo. Olhas-me nos olhos com um sorriso que também conheço muito bem, estás quieto demais nessa fotografia, apenas a sorrir indiferente às lágrimas que me escorrem cara abaixo.
Fechada neste mundo de imagens que eu mesma crio vejo-te a chegar das compras cheio de legumes que nem precisamos mas que compraste a bom preço. Vejo-te a chegar de manhã vindo do trabalho, cansado, pronto para ires dormir todo o dia. Vejo-te a divagar entre a cozinha e o quintal, entretido com a tua vida. Fechada neste mundo de imagens que eu mesma crio, abro os olhos e vejo-te a olhares-me fixamente ao mesmo tempo que sorris. Quieto demais.
Encurralada nesta vida que não sei viver sem ti, sinto-me só. Sim, o telefone toca, a campainha também, mas faltas tu. Tenho saudades de te ouvir fazer barulho a remexer as moedas no bolso, parece que te estou a ver e estou mesmo, estás a olhar-me nos olhos ao mesmo tempo que sorris. Conheço-te tão bem esse sorriso. O som que fazias. A alegria com que o fazias. Pelo amor de Deus, mexe-te! Estás quieto demais nessa fotografia. Não vez as lágrimas que me escorrem cara abaixo?
Nunca me conheceste, não soubeste quem eu era, apenas o que julgavas que vias, mas não vias, não vias tudo, vias só parte, o visível, a parte de fora daquilo que sou, por isso te digo que nunca me conheceste porque nunca viste tudo, apenas o que julgavas que vias, percebes? Conheces uma imagem de mim, apenas uma imagem de mim, incompleta, feita de gestos incompletos, palavras incompletas, passos incompletos. Conheces-me a meio caminho entre o que julgas que sou e o que sou de verdade.
Tenho a certeza que neste momento não me sabes aqui, a escrever estas palavras todas, a pensar nisto tudo do que sou e do que julgas que sou, não me sabes, não me conheces nem nunca conheceste, se calhar julgas-me longe ou então nem sequer isso, eu completamente ausente de dentro de ti, esquecido a um canto, no canto onde me deixaste. Mas eu estou aqui e gosto de pensar nestas coisas, gosto de me interrogar, de ir ao fundo das questões, sou pouco dado às superfícies e às aparências.
Nunca me conheceste, não soubeste quem eu era, ficaste-te pela metade ou se calhar nem metade, apenas a pequena parte que se vê, o resto ficou comigo, estava (e está) tudo cá dentro, guardado para um dia, quem sabe, não sei, não faço qualquer ideia, logo se vê, não conheço o futuro, não sei o que me reserva, só sei que por agora, no momento em que despejo estas palavras, o presente é ausente, cheio de dúvidas e incertezas embora nada que retire a sensação de que nunca me conheceste, não soubeste quem eu era.
A Sara. Mais tarde ou mais cedo teria de escrever sobre ela. Era completamente inevitável. A Sara é uma personagem única. Vejo-a quase todos os dias quando chega a hora de ir comprar o almoço. Não lhe conheço a idade, mas tenho a certeza que não andará muito longe da centena de anos. Uma vida enorme, do tamanho do sorriso que todos os dias espalha por tudo e por todos ao mesmo tempo que fala consigo mesmo em voz alta, feliz, tão feliz!
O seu corpo já pequeno, mirrado e curvado, a sua pele cheia de vincos, dobrada por episódios que desconheço. As roupas, sempre velhas, sempre desalinhadas, descoordenadas, um lenço que lhe cobre ora o pescoço ora a cabeça, uma barba que comicamente se habituou ao seu rosto, o cabelo grisalho apanhado, uma voz alta e bem colocada, metendo-se com toda a gente ao mesmo tempo que fala consigo mesmo, feliz, tão feliz!
A Sara passa grande parte do tempo a rir. Já nem a imagino de outra maneira. No cesto que transporta consigo, sempre duas garrafas de Coca Cola. Como se fosse o principal da sua refeição, que acompanha depois com uma sopa ou com o que calhar. À saída, reserva mais umas bocas para esta e aquela pessoa e lá vai ela, toda contente apanhar o seu autocarro. A Sara é um exemplo de alegria. Acho-lhe uma piada desgraçada. A esta hora acredito que esteja em casa, feliz, tão feliz!
Senhor Doutor, não sei o que se passa comigo, as palavras saem-me tristes, dolorosas, pesadas. Arranham-me a alma, quase a ferem, saem-me desoladas, chorosas, saudosas. Sabe, gostava de escrever o calor do sol, a sua luz, aquela energia toda que nos chove em cima e também o mar, a sua força e imensidão, ou o céu, já viu hoje o azul do céu? Gostava de o pintar nas minhas palavras, gostava tanto, mas quando tento não encontro essas cores, parecem fugir, esconder-se de mim. Sai-me apenas um negro opaco, disfarçado de palavras.
Minha senhora, eu não sou médico das palavras. Bem que gostava de saber curá-las, se soubesse seria o primeiro a transformar dor em alegria, saudade em encontro, adeus em olá, morte em vida. Nem imagina, se eu pudesse curar as palavras, transformava impossível em realidade, guerra em paz, lágrimas em sorrisos, ausência em presença. Conheço os segredos da medicina, dos medicamentos, das doenças e no entanto as palavras, tantas palavras dolorosas, ásperas sem que eu nada possa fazer para as aliviar.
Não me diga que não me pode ajudar, não me diga que não sabe curar as minhas palavras, não me diga que me vão continuar a atormentar, não me diga que o sol vai continuar encoberto, não me diga que vai continuar a ser noite nos meus dias, não me diga por favor não me diga. Senhor Doutor, o que se passa com as palavras? Será que perderam o encanto? Será que tenho de colocar um ponto final nos meus textos? Será que tenho de fechar este livro? Será que tenho de desistir das palavras? Logo eu que tanto gostava de as pintar com as mais belas cores...
Hoje não escrevi Se calhar não existi Ou não vi que vivi Palavras paradas Vida suspensa Letras à deriva Nas estradas da vida Num mar de saudade Vestidas de verdade Flutuando perdidas Navegando sentidas Palavras paradas Desordenadas Hoje desarrumadas Esquecidas Talvez porque não as escrevi Ou porque não existi Ou porque não vi que vivi.
Bastava ter ido embora. Bastava ter pegado nas coisinhas, arrumá-las uma a uma e depois, muito fácil, chave na porta, elevador e aí vai ele em direcção ao seu carro, sabe-se lá para onde, também não interessa agora, vai à vida dele e depois logo se vê. Importante é que não foi porque não quis, preferiu ficar, firme, convicto da sua decisão e lá está ele, no sitio do costume, sentado ao computador, lutando pelas suas histórias sem abdicar de nenhum episódio.
Há pessoas que nascem, vivem e morrem sem perceberem que viveram. Bastava ter ido embora. Bastava ter pegado nas coisinhas e pronto já estava mas, e depois? Sim, e se depois, anos mais tarde, depois de nascer de viver e de morrer, percebesse que afinal não tinha vivido? Sacana da frase, logo havia de saltar rádio fora... o homem até já estava na garagem, quase em casa e de repente, como um terramoto, há pessoas que nascem, vivem e morrem sem perceberem que viveram.
Importante é que não foi porque não quis, preferiu ficar. Não sabe se preferiu viver, não sabe quase nada, apenas que ir embora não, afinal não lhe bastava, assim como não lhe bastava ter pegado nas coisinhas, arrumá-las uma a uma e depois, muito fácil, chave na porta, elevador e aí vai ele em direcção ao seu carro. Não sabe se preferiu ficar, se preferiu viver, não sabe quase nada. Sabe apenas que há pessoas que nascem, vivem e morrem sem perceberem que viveram.
Há uma imagem que se gravou na minha memória julgo que para sempre. A nossa mente tem muita arrumação, mas à medida que os anos vão passando, o espaço vai-se enchendo e chega uma altura em que é preciso deitar umas coisas fora para poder arrumar outras novas. No entanto, existem determinadas prateleiras intocáveis, com episódios tão importantes ou marcantes que ali permanecem arrumadinhos, completamente indiferentes ao passar do tempo.
Gosto de visitar este compartimento interior com alguma frequência e lá descobrir alguns dos momentos mais importantes que tive a oportunidade de viver. Gosto de revê-los. Depois volto a arrumar tudo no seu devido sítio, já com alguma saudade à mistura, e partir rumo a novas vivências aceitando desde logo que a qualquer momento, algo de importante pode acontecer. Digno de figurar nas tais prateleiras, aquelas onde existe sempre mais um espacinho disponível.
Foi isso que me aconteceu este sábado. Eu estava completamente desprevenido, sentado no chão do quarto das minhas sobrinhas. Brincava com elas a N coisas e de repente, a alegria que irradiavam por estarem ali comigo, a forma como me disputavam, como me sorriam, aquele amor, simplesmente amor a nada mais, puro, sincero, gigante, gravou-se-me aqui numa imagem que não mais me abandonou. Nem vai abandonar. Parece que as estou a ver. Estou mesmo a vê-las. Tenho saudades.
Era já tarde quando chegou, não sei, talvez uma meia noite, talvez mais, era tarde quando chegou e abriu o portão para poder entrar. Este lento, este da direita para a esquerda, lento, demorando segundos vazios de tempo, ainda por cima tarde, já noite dentro, ele cansado, o portão lento até que por fim aberto, finalmente aberto para ele entrar e ele entrou, cansado, pensando em tudo e em nada, procurando chaves, revolvendo memórias, arrumando ideias ou a falta delas, até que stop, carro parado, noite parada, vida parada.
Os passos, rápidos, carregados, o chão fugidio debaixo dos pés, a deslizar e mais passos até à porta, fechada, sempre fechada. O portão novamente lento, da esquerda para e direita, fechando-se do mundo, como um muro, uma fronteira, uma barreira. Novamente as chaves, aos gritos, até que a tal, a escolhida e naquele momento, naquela pequena fracção de tempo, outro mundo, outra vida, imaginada, outra realidade do outro lado, esperando, possível, o som da porta, outra realidade, possível.
A porta aberta, a luz acesa, o corredor na sua frente, quieto, adormecido, acordado por breves instantes e de novo adormecido na escuridão, as escadas, desertas até que por fim o seu mundo, o seu refúgio, reflexo de si mesmo, à sua espera, também quieto, também adormecido. A realidade tal como ela é, realidade, longe da imaginada naquela fracção de tempo, vazia, quase desoladora, real demais para poder ser realidade. Sorte que era tarde e como era tarde, deitou-se, esqueceu-se e dormiu até hoje, aqui, agora.