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Deep Silent Complete

"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto

Deep Silent Complete

"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto

17
Jan07

O senhor do colete amarelo fluorescente.

Marco
A rendição. A desistência total e assumida. Sem reacção. Inerte. Conformada. Triste. Rendida. A vida vazia de vida. A vida apenas existência, sem conteúdo ou recheio. Um triste caminhar, cabisbaixo, prostrado, lento, desolado. A rendição é o supremo acto de não tentar, é a fuga por definição, é o fim de quem já não tem a coragem para começar. Ou recomeçar.

O senhor do colete amarelo fluorescente recomeçou. Não se rendeu. Não desistiu. Reagiu. Não se conformou, triste. Foi em busca de um novo sentido para as suas manhãs. Fez pela vida em vez de se deixar simplesmente ir vivendo. Não aceitou caminhar triste e cabisbaixo. Tentou. Teve a coragem de ir atrás, em busca de um novo significado para a sua vida e felizmente conseguiu. Como conseguem todos aqueles que não aceitam render-se!

É vê-lo, todas as manhãs, bem cedo, à frente do infantário de uma pequena terra chamada Palhagueiras. Gosto de lhe sorrir. Ele sorri-me. Sinto-o orgulhoso dentro do seu colete amarelo fluorescente. Tem também um boné da Câmara Municipal. O seu peito, nota-se que cheio de ar. A sua cabeça bem erguida. A missão que abraçou é fazer parar os carros para que as crianças possam atravessar a estrada. Uma missão nobre. Daí o seu sorriso.

Porque não se rendeu.
16
Jan07

Depois do adeus.

Marco
Já acabei de escrever. Acabei neste preciso momento de o fazer. Escrevi as palavras que não disse, ou que disse sem dizer. Estive num sitio que não existe e por momentos fui eu, ali, nesse local tão incerto onde as letras se encontram em vez das pessoas. Li o que não ouvi e nessas palavras imaginei uma voz que hoje não soou aos meus ouvidos. Depois despedi-me e fui-me embora sem sair do mesmo sitio. Agora estou aqui, de novo eu, só eu.

Existe um frio que vem de dentro para fora. Gela-me os ossos. Um frio que contrasta com a temperatura da minha pele, hoje mais quente, febril, doentia. A minha cabeça pesa muito mais do que nos outros dias, como que cheia, repleta, a rebentar. Consigo distinguir o sangue apressado, bombeado por um coração que bate cheio de certeza. Cheio de convicção. Pesam-me os olhos. Pedem-me que os feche. Imploram-me. Ardem-me. Ardem-me.

Faço-lhes a vontade. Não há mais nada para ver hoje. Já estive onde não estive. Já vi quem não vi. Já ouvi quem não ouvi. Já falei com quem não falei. Agora, resto eu. Resto eu nesta noite fria dentro de mim. Gelada. Tão quente na superfície, tão gelada dentro de mim. Penso as ultimas palavras, escrevo-as em busca de um sentido, em busca da ideia de alguém que já disse tudo, já escreveu tudo e agora se prepara para o ponto final que põe termo a este texto.
15
Jan07

Parabéns Tóino.

Marco
Hoje era dia de telefonar. Não que nos outros dias não pudesse telefonar e muitas vezes até o fazia, mas hoje era de certeza dia de telefonar. Normalmente ainda a meio da manhã, outras vezes ao fim do dia, quando a memória resolvia fazer das suas, ou melhor, não fazer. Marcava os números, uns atrás dos outros, um dois três toques no máximo e a tua voz, tou! E estavas mesmo. Estavas do outro lado para me ouvir dizer parabéns. Mais uma vez, parabéns.

Sempre foi assim neste dia, desde que me lembro. Depois, ao principio da noite, sempre que possível, o beijinho era dado ao vivo e era normalmente nessa altura que me recordavas do nosso projecto. Meu e teu. Coisa simples. Eu dizia que quando me reformasse queria uma vivenda ao lado do estádio do Sporting. Tu, no teu jeito brincalhão, respondias que querias ser o meu jardineiro. Não esqueças que o avô quer ser o teu jardineiro quando te reformares, ao lado do estádio do Sporting!

Claro que não esqueço. Nunca esquecerei. Mas uma coisa te garanto Tóino, já não  quero a vivenda. Parece que já estou a imaginar aquela relva tão enorme como disforme, ao abandono, sedenta das tuas mãos. Sem ti, o projecto deixa de o ser e passa apenas a memória. Mais uma das tantas que nos deixaste e que eu nunca esquecerei. Assim como nunca esquecerei que hoje é dia 15 de Janeiro e que por isso, era dia de telefonar. Pensado melhor, ainda é dia de telefonar. Espera aí, vou já ligar. É que estás de parabéns.
12
Jan07

... por ti.

Marco
Não escreveste nada porquê?
Ontem à noite não me apeteceu pegar no computador e hoje ainda não me surgiu nada...
Não te surgiu nada?
Na verdade até surgiu, mas não sei se o devo escrever...
Porque não?...
Porque é maior do que as palavras!
Maior do que as palavras? Como assim?
Imagina um dicionário... lá, existem todas as palavras possíveis...
... sim e?
Aquilo que me surgiu, não existe no dicionário... é muito maior e por isso desconfio que não o consigo escrever...
Mas podias sempre tentar...
Claro que podia, mas corria o risco de ser muito injusto para com o que me vai cá dentro... iria escrever a parte e não o todo...
Mas se não tentares...
Se não tentar, nunca o vou saber, nisso tens razão...
Então... de que estás à espera?...
Não sei por onde começar...
Não penses tanto nisso, começa e pronto...
Posso tentar... acredita que gostava de conseguir... como uma escultura feita de palavras, todas as formas definidas, todo os contornos... a mais bela das esculturas...
Olha isso pode ser um começo...
Pois pode... mas não é...
Não é porquê?...
Porque para começar...
... para começar... sim...
... teria de começar...
... sim, terias de começar...
... obrigatoriamente...
... sim, obrigatoriamente...
... por ti.
11
Jan07

Hoje pela manhã.

Marco
Em que pensará aquela miúda – parece ter idade de miúda, ali parada naquela rotunda fria, banhada por um nevoeiro rasteiro que lhe tapa os pés. Escondida dentro de um casaco que quase a ocupa por completo, com um gorro que lhe aquece as ideias, permanece ali, imóvel, todas as manhãs naquela fracção de segundo em que passo por ela. Uma miúda. Vinte e poucos anos. Uma vida ali suspensa, à espera de um momento que desconheço. À espera de um rumo.

Em que pensará aquela senhora – tem de certeza idade de senhora, ali escondida atrás  daquela discreta janela, uma rua abaixo da rua a que procuro chegar. Da sua cara, apenas metade, os seus olhos fundos, perdidos, o seu cabelo branco repleto da vida que viveu, da história que escreveu. Para onde olhará ela? O que quererá ela ver? Imagino os seus dias, quietos, parados atrás daqueles vidros que se embaciam com a sua respiração. À espera de um rumo.

Em que pensará aquele rapaz – perece ter ainda idade de rapaz, sentado atrás daquele volante, conduzindo-se sabe-se lá para onde, todos os dias pelas mesmas estradas como se no fim delas, um destino diferente. Ele e a sua música, observando o mundo, a miúda parada na rotunda, o nevoeiro rasteiro, a senhora escondida atrás da janela, as estradas, o seu destino. Lá vai ele, mais uma vez, mais uma manhã, mergulhado nos seus sonhos. À espera de um rumo.
10
Jan07

O pescador de estrelas.

Marco
Havia um senhor, já de idade avançada, que todas as noites caminhava pelo escuro, sozinho, até chegar a um ponto onde era possível ver a luz da lua reflectida no imenso mar. Dizia-se que tinha sido ali, naquele preciso local que a sua vida mudara para sempre, mas ninguém sabia ao certo nem como, nem porquê. O senhor também não era de muitas falas, preferindo sempre sorrir quando lhe perguntavam o que lá ia fazer.

Chamavam-lhe carinhosamente o pescador de estrelas. Ele, para não variar, sorria. Mas no seu íntimo, gostava do nome e sentia-se bem nessa pele. Atrás dos passos que dava noite após noite, ficava o rasto de uma história que cedo conhecera o seu fim. Episódios que deixaram de o ser. Eram passos amargos, mas o senhor, mesmo já de idade avançada, não se detinha e continuava o seu caminho até chegar ao local exacto onde se encontrava consigo mesmo.

Certa noite, uma criança chegou-se perto dele e perguntou-lhe porque te chamam pescador de estrelas? Ele olhou-a, sorriu e disse olha o céu. Olha melhor. Vês as estrelas? Sim, vejo. Gostas delas? Sim, gosto muito. Gosto daquela que brilha mais do que as outras. Eu também. Se gosto. Sabes, antigamente ela não brilhava tanto como hoje. Só passou a brilhar assim, tão mais do que todas as outras, na noite em que tive de a olhar, pela primeira vez, sozinho.
09
Jan07

Deslizando na noite.

Marco
Cheguei a pensar que não vinhas. Não que alguma vez tenhas deixado de vir, mas de repente dei comigo a olhar para o relógio e os minutos teimavam em fugir sem que de ti, um único sinal. No céu, como as badaladas de um relógio, os aviões partiam rumo a mil destinos que desconheço, mas que imagino perfeitos, lá longe, onde a minha vista não chega, onde a minha vida nunca aconteceu. Onde vidas e mais vidas acontecem sem que de mim, um único sinal.

Cheguei a pensar que esta é uma estrada sem fim. Quase todos os dias a faço, mas hoje, as suas curvas sucedem-se lentamente. Não estou aqui. Talvez seja por isso. Eu não estou aqui a conduzir este carro. Vou provavelmente num dos aviões que vi passar como badaladas e viajo para longe, sem rumo, flutuando por cima do mundo com se este fosse uma pequena esfera azul e castanha repleta de nada. O que agora acontece lá em baixo já não me interessa. Sei que cá em cima, vou feliz a deslizar.

Cheguei a pensar que não vinhas. Agora que a noite é ainda mais noite, agora que hoje já é amanhã, confesso-te que cheguei a pensar que não vinhas. Aqui sentado no fim de todas as estradas, de volta à pequena esfera azul e castanha, esboço um sorriso, encosto a cabeça na almofada e deixo-me mergulhar nesse mar de sonhos que por mais sonhados que sejam, não conseguem nunca chegar perto da realidade de há momentos. A realidade que fica além de qualquer palavra que aqui possa escrever.

E eu, que cheguei a pensar que não vinhas...
08
Jan07

Acordar... para a vida.

Marco
Será a profundidade da sua voz que me fascina? Uma voz madura, num tom de sabedoria vivida. Uma voz que fala pausadamente parecendo acabar cada frase com reticências. Reticências sobre a vida? Eventualmente. Uma voz que não gosta de falar, segundo o próprio – não gosto de falar. Uma pena, porque sempre que o faz, para mim é como se estivesse a ouvir uma musica perfeita, composta pelas frases certas, ditas no momento exacto.

Homem de olhar azul profundo, quase perdido, quase vago, quase ausente, António Lobo Antunes tem a capacidade de me arrepiar com os seus pensamentos, com a sua forma de ver a vida, de ler a vida. Sim, como escritor genial que é, julgo que lê a vida. “Temos a obrigação de viver também por aqueles que partiram”. Que leitura. Que frase. Entre outras que tornaram a minha manhã de sábado num acordar… para a vida.

“Faz-me confusão as pessoas celebrarem o ano novo. Para mim, é mais um que passou e menos um que me separa da morte. Falta-me menos um ano”. Esse mistério chamado vida. Quem o lê, descobre-o escondido nesta e naquela frase, mas descobre-se também a si, descubro-me também a mim. Na manhã de Sábado, ligado ao rádio como antigamente, fiquei a saber um pouco mais sobre quem sou eu e que vida é esta que ando a viver. Soube-me bem.
05
Jan07

Tarde demais.

Marco
O que é um dado adquirido é adquirido e porque adquirido, está lá, onde é suposto estar, sempre à hora marcada, como sempre, pronto para desempenhar o papel que lhe cabe, dia após dia, ali, numa dedicação supostamente garantida pelo rótulo de dado adquirido, rótulo esse que é colocado quase sempre indevidamente, sem autorização prévia ou mesmo sem conhecimento.

Segue-se a fase da não valorização, porque adquirido, porque garantido, porque habitual e porque habitual, normal e porque normal, banal. Não. Nada disso. Porque depois, o dado adquirido sente isso e começa a ficar triste, e mais triste e mais triste ainda para depois se questionar o porquê de ser adquirido se ninguém lhe liga, se tudo o que faz é como se não fizesse.

Por fim, o dado adquirido deixa-se disso, parte para outra, vai em busca primeiro de si mesmo e mais tarde de quem o valorize sem rótulos. Depois fica o vazio. O seu vazio. Um vazio grande porque afinal era muito o que era, o que fazia. Depois fica o vazio e fica também o tempo que passa a não passar depois de ter passado sem que ninguém tivesse dado por ele. Tarde demais.
04
Jan07

Hoje tenho saudades.

Marco
Tenho saudades de ser criança e de achar que os dias eram intermináveis. De me levantar manhã cedo e chegar à escola com o frio a ser qualquer coisa que ignorava por completo. Tenho saudades das jogatanas de futebol antes das aulas em que as mochilas serviam de baliza e onde cada golo era por certo o mais importante de todo mundo. Tenho saudades do toque para as aulas que era dado por uma sineta manual e claro, das próprias aulas.

Tenho saudades de vender rifas para uma competição entre turmas, em que a vencedora ganhava uma bola de futebol. E como era precioso esse prémio! Tenho saudades das horas de almoço enormes, passadas a comer rebuçados e a jogar basket sozinho ou em grupo. Tenho saudades de correr sem me cansar, de viver sem pensar, de ser feliz sem notar. Tenho saudades das modas dos berlindes, dos piões, dos carrinhos de brincar, das colecções de cromos.

Tenho saudades dos fins de tarde depois das aulas com o sol a despedir-se e a dizer até amanhã. Tenho saudades de ir para a natação com o meu avô Tóino, de nadar, nadar, nadar. Tenho saudades de ouvir cassetes de heavy metal em segredo porque pecado proibido. Tenho saudades de não sentir a vida como um monte de areia que me foge lentamente por entre os dedos. Tenho saudades do tempo em que nem dava pelo tempo.

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