"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
Às vezes chegam-me palavras escritas em vez delas mesmas, ditas, sentidas, vivas, apenas escritas e assim, reduzidas à sua forma mais crua, apenas elas mesmo. Cravadas num fundo branco, presas atrás deste vidro grosso à minha frente, enviadas de longe, elas, ali, apenas elas mesmas, sem o rosto que as pronunciam. Palavras cegas. Palavras apenas palavras, secas, difíceis de perceber em toda a sua plenitude.
Leio-as repetidamente em busca de um sentido mais... sentido. Recuso-as na sua forma mais simples. Tento descobrir o que possam esconder, qualquer mensagem oculta que queiram dizer. Palavras ditas aos solavancos, palavras incompletas, palavras enigmáticas. Alinhadas em forma de frase, na vez de uma voz. De um som. Espaçadas no tempo por minutos que parecem não passar, quase gagas. Palavras suspensas.
Tento agarrá-las e arrumá-las na sua ordem correcta. Que ordem? A que quero que signifiquem ou a querem na realidade significar?... E eu suspenso. Agora eu, parado, interrompido por umas palavras que me chegam, compassadamente de longe. Volto a lê-las, tentando ver para além delas, tentando ver o que existe do outro lado, uma vida que acontece, uma cara que olha, que tenta arrumar e encontrar um sentido para aquilo que também eu, lhe escrevo.
A ausência é longe daqui É distante Tem um peso pesado Constante Queria encontrá-la Cortá-la Gostava de lhe dizer Cheguei Gostava de a ver Desaparecer A ausência é longe daqui Porque aqui A ausência é enorme Disforme Cabe em todo o lado É presente Tem um peso pesado Latente Queria expulsá-la Encontrá-la Gostava de vê-la Vivê-la Já não a ausência Mas a minha essência.
Fechou a porta. Teve de o fazer, embora contrariado, vergado a uma lei que o transcende e ultrapassa. Ainda antes, numa fracção de segundo que cedo se evaporou, ouviu com estrondo o elevador a despedir-se e descer lentamente para longe de si, perdendo-se na noite. Depois a porta, finalmente a porta, a fechar-se, como um muro, uma barreira alta, sempre tão difícil de transpor. O silêncio da casa vazia. O silêncio do mundo longe do mundo, à parte do mundo, maior do que o mundo.
Lá fora a chave na ignição, o motor, o arranque, a distancia. Uma estrada a crescer a cada instante, um caminho a desenhar-se maior à medida que os dois pontos que lhe deram origem ficavam cada vez mais longe um do outro, como um tapete que se desenrola infinito. Para trás, ficavam breves instantes de tempo cheio agora a existir vazio, fechado por uma porta que bateu, seca, na noite. Novamente a estrada, a crescer. Novamente o silêncio do mundo, à parte do mundo, maior do que o mundo.
Os passos lentos dentro da casa vazia. Um após o outro, acompanhados com pensamentos de tristeza, de saudade, de esperança, de memória. Os objectos, todos eles familiares, todos eles testemunhas de uma vida inteira ali vivida. Uma porta. Uma porta que atravessara e fechara milhares de vezes agora intransponível, delimitando a fronteira entre os sonhos a uma realidade que lhe fugia, inevitável, estrada fora, para longe de si. E novamente o silêncio do mundo, à parte do mundo, maior do que o mundo.
A certeza andava pela rua cheia de sim mesma, de certeza. A sua cabeça bem erguida, o seu olhar confiante, repleto de convicção. As ideias que defendia eram firmes, as opiniões acertadas, sendo o caminho percorrido por si, um exemplo que muitos gostavam de seguir. As suas palavras soavam a uma lei universal, impossível de contrariar. A certeza nascera para vencer, para se impor aos demais e a sua vida estava destinada ao sucesso. Com certeza!
A dúvida não sabia bem se devia sair à rua, ou ficar em casa. A sua cabeça era um mar de si mesma, de dúvidas. Muitas vezes preferia não aparecer para não se lançar sobre os outros visto que as suas ideias eram uma névoa densa, cerrada. Outras vezes saía, mas nunca sabia que caminho seguir, passando horas dentro de si mesma. As suas palavras eram ditas a custo, sem convicção. A dúvida nascera simplesmente para existir e a sua vida era uma incógnita. Uma dúvida.
Certo dia, de sol radioso e um imenso céu azul, a dúvida teve a leve certeza de querer sair. Chegada ao passeio, perguntou-se esquerda ou direita, esquerda ou direita, lá se respondeu direita e arrancou, sempre devagar para não tocar nas pessoas que consigo se cruzavam. Foi então que, num momento em que olhava para trás hesitante, esbarrou violentamente com uma certeza apressada. O choque foi tão violento que se fundiram uma na outra para nunca mais se separarem. Até hoje.
O António era um romântico à antiga. Cabelo penteado tanto na primeira hora da manhã como na última da tarde. Sempre impecável naquele seu jeito meio sonhador, parecendo sempre flutuar entre a realidade palpável e o seu mundo feito de cenários perfeitos. O tamanho do seu sorriso não lhe cabia na cara e a razão que o justificava chamava-se Lara, estudante de medicina, já no quarto ano de curso. Uma futura médica, mais perto de acabar a sua graduação do que se imaginar a mulher mais amada de Lisboa.
Para o António não existiam meias medidas, muito menos hipóteses de enganos nestas coisas do coração. O seu batimento apressado, quase compulsivo só podia ser sinal de um grande amor que apesar de tudo, naquele momento, não mais era do que platónico. Todos os finais de tarde era vê-lo junto à porta de saída da universidade de medicina em busca de um olhar, apenas um olhar que se cruzasse com o seu. Os olhos de Lara já não tinham qualquer segredo para ele. Conhecia-os tão bem como a sua própria imagem reflectida no espelho.
Foi então que tudo aconteceu. Num dia como os outros o amor de António transbordou. Encheu-se de coragem, vestiu a sua melhor roupa, penteou-se com todo o pormenor, olhou-se no espelho e disse a si mesmo de hoje não passa, vou declarar o meu amor. Saiu de casa, dirigiu-se para a o local do costume e lá aguardou impaciente. Os minutos, todos eles, parados. O tempo, nessa tarde, não passou. Assim como a Lara. Nem nessa tarde, nem em nenhuma outra, para tristeza do António e do seu coração que nunca mais bateu da mesma forma.
Lá estão vocês, mais uma vez a olhar para mim, sim são vocês que olham para mim, aqui deitado com as mãos atrás da nuca, cercado de relva e mais além, de árvores que não tenho bem a certeza se dormem ou não durante a noite. Não sei como será o mundo visto aí de cima, mas imagino que me vejam minúsculo, pequeno demais para a imensidão que transborda deste corpo que me acolhe e que agora repousa, aqui, neste sítio secreto, com ligação directa a vocês, estrelas.
Não sei se sabem, se calhar até sabem pois devem passar as noites a conversar umas com as outras, mas hoje, antes de aqui chegar, vi uma pessoa que me disse que também vos conhece. Uma por uma. Estou a falar a sério. E disse-me mais. Disse-me que vos conhece pelos nomes, visto que também ela passa parte das suas noites, deitada num local que desconheço, acordada a observar-vos. Por isso, agora que só aqui estamos nós, pergunto-vos: ela disse-vos alguma coisa? Contou-vos algum segredo? Sobre mim?
Não se escondam atrás das nuvens! Esperem, não se vão embora! Por favor! Fiquem só mais um pouco! Será um segredo assim tão grande? Tudo bem, eu respeito o vosso silêncio. Vou deixar-me ficar aqui, permitindo que vocês me observem enquanto eu, o verdadeiro eu, se escapa por entre as árvores e se deixa flutuar por doces recordações que teimam em dar outro brilho a esta noite. Não me levem a mal, mas hoje, todo o brilho que se reflecte neste meu olhar vem de outro lado que não do céu.
Existem pequenas gotas de tempo que se precipitam de quando em quando, tocando-me no rosto sem no entanto serem suficientes para me envolverem num mar de existência completa, não dependente de quaisquer condições. Sinto-lhes o toque ligeiro. Distingo-lhes a diferença em cada segundo da sua curta vida, mais rápidos, como que secando com o mais pequeno dos movimentos. Evaporando-se numa invisibilidade que já não distingo, para se perderem nessa vasta massa de ar chamada memória.
Existem suaves brisas de memória que me sopram de quando em quando, atravessando-me por completo, refrescando-me a pele do rosto com imagens nítidas de um tempo que se precipitou, fugaz, sobre mim. Sopros demorados que me assobiam no presente, como que me varrendo da realidade, levando-me para longe, para as remotas terras dos sonhos. Esse local feito de ausência, puro, lindo, perfeito, como uma montanha coberta de um fino manto branco a que chamam de neve. Os sonhos congelados.
Existem belos flocos de neve a cair suavemente de quando em quando, descendo devagar em direcção a mim mesmo, dentro de mim mesmo. Flocos de neve que se abrigam no meu interior, fugindo de uma realidade cruelmente quente, capaz de os derreter um por um. Vejo-os dançar, belos, cristalinos. Parecem deslocar-se ao sabor de uma suave brisa para caírem todos na superfície da minha pele, pousados em mim, em contacto com esse tempo que se precipita, fugidio, apressado, parecendo às vezes, não querer nada comigo.
Impressionou-me o seu olhar. O contraste nos seus olhos assustados, brancos e negros. Os seus olhos fundos, na sua cara suja, encostada a um pilar de madeira. Toda ela imunda, um farrapo, selvagem. Não sabe falar, não conhece a linguagem, a comunicação. Vive fechada em si mesmo. Todo o (seu) mundo ela mesmo, nada mais. Sem um nome. Sem uma identidade. Sem uma história. Um pedaço de existência de repente resgatado para uma realidade que nunca foi a sua. Nem será.
Chamam-lhe a menina selvagem e estima-se que tenha andado perdida durante dezanove anos, entregue a si mesma nos matos mais profundos desse remoto país chamado Camboja. Hoje notícia de televisão, mascarada com roupas que não lhe servem, abruptamente trazida para uma realidade sensacional que a esmaga, que a usa. Que a espreme. Pareceu-me assustada, triste, vazia. Pareceu-se desejosa de fugir de novo para o seu mundo feito apenas de si mesma.
Um mundo onde porventura era feliz. Impressionou-me o seu olhar. A ausência do seu olhar. Imagino como se deve sentir tão só no meio de tanta gente e imagino como deveria sentir-se tão acompanhada quando apenas consigo mesmo, no seu verdadeiro mundo de árvores, raízes, terra, animais, rios, fome, frio, chuva, sobrevivência. Um mundo improvável, impossível para nós, mas o mundo dela. Não este onde é capa de jornais, o rosto da notícia. Este que a consome hoje, para esquecê-la amanhã.
Havia espreguiçadeiras de cor laranja apontadas ao luar. A margem Sul do Tejo como testemunha de uma noite que prometia ser a primeira das suas vidas. Estávamos no início de Setembro, mas no íntimo de cada um, nascia uma primavera cheia de flores, de cheiros, de azul, de céu, de mundo, de tudo. Tudo. Estava tudo a nascer, a brotar, a explodir sem limites ou fronteiras. Apenas sonhos nem sequer sonhados, mas ali, realizados.
Certos momentos fizeram-se para serem eternos. Infinitos. Aquele era um deles e foi assim que se gravou na memória dessas duas pessoas que ali, forradas a estrelas, se olharam pela primeira vez a uma distância de nada, vendo-se para além dos olhos, tocando-se pele na pele e rindo-se bem para lá de todo o riso. Como que escrito desde sempre. Como uma lei da terra, impossível de contrariar. Mais forte do que todas as correntes de todos os oceanos.
Hoje aquele mesmo espaço permanece vazio. Está lá na mesma a margem Sul do Tejo e em cada luz que se vislumbra deste lado, está uma pessoa na janela à procura deles. Na esperança de os ver de novo juntos. Foram-se as espreguiçadeiras de cor laranja apontadas ao luar. Foi-se até o próprio luar. Ficou um lugar. Só um lugar. Um lugar do nada. Apaga-se uma luz do outro lado do rio. E outra. Mais outra. Uma a uma até que, por fim, tudo escuro.
Existem forças que não podem ser contrariadas. À medida que me aproximo dessa barreira antigamente tão impossível chamada 30 anos, reforço a minha convicção de que existem forças, que por mais que as tentemos contrariar, jamais poderão ser vencidas. Trata-se de uma luta perdida. Não de uma rendição. Mas de uma constatação. Há que saber percebê-lo, aceitá-lo e continuar com os dias sucessivos, de sorriso na cara, porque a vida é mesmo assim.
Acho que este, poderia ser o resumo perfeito da conversa que ontem mantive ao jantar com um grande amigo meu. Companheiro de aventuras em histórias do arco da velha, dignas de estarem presentes num livro de memórias da adolescência. Poderia aqui gastar variados parágrafos a contar uma ida a Benidorm, cujas fotografias ainda hoje me fazem sorrir, não sei se de incredulidade, se de saudade. Sei que foram umas das melhores férias da minha vida. Das nossas vidas.
Ou então, poderia falar de uma famosa queima das fitas em Coimbra ou da noite em que fizemos desaparecer a varinha mágica de um ilusionista que actuava num bar em Santa Cruz. Poderia falar disso tudo, mas resolvi antes abordar a nossa conversa de ontem à noite ao jantar. As nossas vidas hoje, tantos anos depois. A realidade tal como ela é. Sem aventuras. Sem rodeios. Sem a inconsciência de outros tempos. Acho que crescemos. Talvez tenha sido isso que nos aconteceu.