"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
Tinha prometido a mim mesmo que eram férias, curtas mas férias, e que nada de textos, nada de escritas, nada de blogues. Andaria durante esta semana dedicado a absorver o mundo, qual esponja, para depois poder espremer em palavras tudo aquilo que vi ou vivi. Desta vez, iria fazer jus ao nome com que baptizei este meu espaço, dedicando-me ao mais profundo e completo silêncio. Então porque escrevo eu? Logo hoje, nesta bela manhã azul?
Escrevo, melhor, escrevo-te, no fundo para dizer que estou aqui, que não fui, nem me vou embora. Que mesmo em silêncio, continuo cá, como sempre estive, pronto para tentar dizer a palavra certa, pronto para ajudar a vencer qualquer dificuldade. Sem pressas nem precipitações porque todas as feridas levam o seu tempo.
Poderia estar aqui a utilizar todos os elogios de que tivesse memória para te confortar, aquelas palavras que ficam sempre bem e que nos confortam o ego, mas nem isso vou fazer. Vou dizer-te apenas que podes contar comigo sempre, para tudo e vou acabar este texto com a citação de uma frase que por mero acaso li ontem, mas que gostei muito: “ A felicidade às vezes é uma benção, mas geralmente é uma conquista”.
Dizem que os sonhos duram segundos ou mesmo fracções dos mesmos. Não sei se essa verdade é científica ou absoluta, mas desconfio bem que sim. Esta noite, aquele abraço, meu Deus aquele abraço, porquê tão rápido? Porquê? Queria ter-te abraçado a noite toda, queria ter-te dito que estou cheio de saudades tuas, estamos todos. Queria dizer-te que te amo muito e repeti-lo para que nunca o esquecesses. No entanto, apenas aquele curto flash e nada mais.
Apesar de tudo, foi a primeira vez que me visitaste depois de teres partido. Deves ter vindo ver se estava tudo em ordem e não devias ter muito tempo. A chamada visita de médico. Mas nem tenho palavras para descrever o que senti ao ver de novo esses olhos azuis, ao tocar-te a abraçar-te de novo. Foi como se nada tivesse acontecido, como se tudo na mesma, tu, eterno como sempre, sorridente, castiço, amigo, alegre, avô! O meu avô outra vez perto de mim.
Agora que acordei para a dura realidade, sei que não te tenho aqui. Sei que este dia chuvoso chora a tua ausência. Mas também sei que aí em cima estás atento a todos nós e deixa-me que te diga, deves estar neste momento, cheio de orgulho. Na mulher que tens, que Mulher! Que coragem! Que força! Que exemplo! No filho que criaste. Que Filho! Que firmeza! Que atitude! Que exemplo! Na nora. Que Nora! Enfim todos... Aqui entre nós os dois, desconfio que todos que se inspiraram em ti para vencer este momento difícil.
Quem és tu que todos os dias me escreves, num esforço criativo por me fazeres belo, diferente, sincero, sentido? Quem és tu que me tiras dentro de ti para me tornares todo eu texto, cheio de pedaços teus, como um reflexo descrito, a tua voz muda, silenciosa, a gritar nestas letras que se juntam ao acaso para te fazer existir, aqui, onde todos te vêm sem saber quem és. Quem és tu, que estás aí a fazer-me acontecer em vez de ti?
Vejo-te sentado, a olhar-me de ar cansado mas sério. Pareces preocupado, sem saber o que fazer comigo e no entanto eu a observar-te, a perceber-te longe, bem longe de mim. Hoje não sou importante para ti, é-te indiferente se estou a ficar legível a todos ou não, estás a milhas daqui, lá, onde a tua vida se enche de significado. Onde a tua vida se enche e vida. Pergunto: quem és tu que todas as noites te escreves em mim?
Hoje não te conheço. Olho-te mas vejo-te a uma distancia tão grande que me sinto impotente para te espremer em palavras. O teu olhar está fundo, perdido numa estrada de carros desordenados que regressam a casa. É aí que tu estás. Num carro cinzento. Sou capaz de jurar que te descortinei um leve sorriso. Não vou insistir mais. Deixo-te seguir a tua viagem. Eu fico-me por aqui, afinal de contas, já sou texto suficiente para me escrever sozinho.
Imagino-o escuro. Sobretudo escuro. Negro de um negro tão negro que nenhum vislumbre. Talvez apenas aquelas estrelinhas que os nossos olhos parecem fabricar sempre que nada mais para ver. Mas apenas isso, de resto, a absoluta falta de existência, de pulsar nesse buraco fundo, infinito, escavado bem dentro de ti e onde ninguém consegue chegar.
Imagino-o frio. Também frio. Escuro, muito escuro e frio, muito frio. Gelado. Acredito até nesse misterioso formar de fumo vindo de cada respirar, ofegante, sôfrego, aflito. Um respirar perdido nas profundezas desse mar de escuridão, banhado a estrelinhas que só existem porque nada mais para ver ou reparar. Um respirar, apenas um respirar, um respirar, apenas um respirar…
Um buraco movediço, traiçoeiro, solitário, invisível a todos e gigante aos teus olhos que nada vêm porque escuro, muito escuro. No máximo estrelinhas que nem o são apesar de o parecerem. Um buraco que te afunda mas que não te derrota. Um buraco pronto a ficar vazio de ti mesma visto que cá em cima uma mão, firme, decidida forte. Uma mão pronta assim tu a segures. Força!
Há uma frase mais ou menos conhecida que é conhecida por dizer mais ou menos isto – Posso não chegar à lua (uns preferem dizer “céu”) mas ao menos tirei os pés do chão. Há dias, quando a noite bem noite, estas palavras, todas elas, disparadas contra mim, tocando-me fundo depois de terem feito o mesmo a quem mas enviou. É de facto uma bela frase, mas estética à parte, interessa-me o seu conteúdo.
Será ela uma frase conformista? Ou seja, se não vencer, fico contente por ter participado. Se não conseguir fico contente por ter tentado. Será isso? Ou pelo contrário, será ela uma declaração de intenção? Posso não vencer, não conseguir, mas vou fazer tudo o que puder para consegui-lo. Aliás, já comecei. Comecei por me mexer, por tirar os pés do chão. Divagações minhas, leituras possíveis ou talvez impossíveis.
O que julgo saber de facto é que a lua (ou o céu) estão apenas à distancia a que os colocamos de nós próprios. E julgo que muitas vezes os declaramos inatingíveis, porque sabemos ser muito mais confortável não viver no desconforto de os sabermos por perto, de os desejarmos ter e tocar e não poder porque o conforto...ai o conforto...que desconforto...que desconforto o adeus ao conforto, o frio na barriga...as dúvidas...e se?...e se não?...ai o conforto...antes o conforto...ao menos...conforto...e pelo menos... isso...
Ele dizia sempre que essa manhã havia de chegar. Esse era o seu argumento e mais do que isso, a sua esperança. Repetia-o vezes sem conta perante tudo e todos. Mesmo quando lhe diziam esquece, essa manhã nunca vai existir, nunca vai chegar. Prontamente abanava a cabeça, tapava os ouvidos e saía a correr para a rua, onde com mágoa constatava um nascer de dia igual a todos os outros. Triste, cinzento, nublado. Cheio do mesmo nevoeiro que há meses lhe turvava a vida.
Não se recordava ao certo do primeiro dia de névoa. Como nascera, porque nascera. Sabia-a apenas lá, todas as manhãs no raiar de cada dia. Sabia-a lá em vez daquela visão que tivera uma, duas três vezes e que não conseguia esquecer. A visão pela qual se apaixonara. Chamavam-lhe sonhador, idealista, louco, sim alguns chamavam-lhe de louco, mas ele não ligava. Continuava a falar daquelas manhãs em que o sol lhe aquecera a face com o mesmo entusiasmo, com o mesmo brilho nos olhos.
Era esse entusiasmo e esse brilho nos olhos que levava consigo todas as noites para mais um adormecer. Mais uma noite de sono guiada pela esperança do reencontro, desta vez em definitivo, com o sol da sua vida. Dormia quase que à pressa, sonhava, tornava a sonhar e ao amanhecer, corria para a rua com o coração aos pulos, na esperança de sentir o seu calor a embater-lhe na cara. Era assim todas as noites, todas as manhã. Como na de hoje. Olho a janela, e lá está ele, pelas ruas, tentando vencer a neblina.
Ninguém sabe ao certo se foi uma escolha consciente, se irreverência, se loucura ou mesmo paixão, mas a verdade é que todas as noites o equilibrista avançava convicto para a sua corda a quem chamavam de bamba. Pé ante pé, sem tremores ou dúvidas, ele aceitava o desafio de se desafiar nessa ténue linha entre o equilíbrio e a falta dele. E lá ia, devagar é certo, mas a andar, a caminhar, rumo ao outro lado, como se do outro lado tudo e deste lado nada.
Ninguém sabe ao certo se era uma escolha consciente, se fazia parte do número, se medo ou mesmo loucura, mas a verdade é que todas as noites o equilibrista chegava a meio da corda a quem chamavam de bamba, parava uns instantes, e regressava para trás. Diziam que ele nada mais desejava do que o outro lado, o lado do tudo em vez do lado do nada. Diziam sempre que ele um dia lá chegaria, restava ver quando.
Certo dia, melhor, certa noite, supostamente mais uma noite igual à outras, noites de metade, noites incompletas, o equilibrista avançou novamente. Avançou mais convicto do que nunca. Seria finalmente o tudo em vez do nada? De repente, vinda precisamente desse lado, uma equilibrista avançou devagar sobre a bamba e encontrou-o bem no centro. O público congelou. O risco parecia total. Mas não. Nada disso. Deram as mãos, sorriram com cumplicidade e seguiram rumo ao tudo das suas vidas.
Bom dia mundo. Já percebi que continuas na mesma, rigorosamente na mesma. Como se nada tivesse acontecido, como se hoje igual a ontem. Indiferente a qualquer dor, indiferente a qualquer saudade. Continuas apressado a girar à volta de ti mesmo, à volta do teu próprio umbigo. São essas as leis do teu jogo e pelos vistos, quem te quiser habitar, não tem outro remédio senão aceitar e jogar.
Hoje, pelos vistos, é um novo dia, igual a todos os outros em que é suposto viver. Carregado de manhã, carregado de rotina, de hábitos, de obrigações. Obrigações que nos obrigamos a nós próprios, mas obrigações. Carregado de tudo o que enche todos os dias de dia, uns atrás dos outros. Hoje, pelos vistos, é suposto ser de novo eu, como se tudo na mesma, como se hoje igual a ontem, afinal de contas, como sempre.
E cá estou eu, resgatado de um mergulho na mais profunda escuridão. Resgatado desse local onde a vida deixa de ser vida para ser saudade, recordação, memória. A vida feita eterna, dentro de cada um de nós. A vida que acaba, mas que continua connosco. A vida que se multiplica por vidas. As vidas dos que hoje choram para amanhã lembrar. Cá estou eu, com mais este pedaço de vida em mim. Cá estou eu, dizendo bom dia mundo mas desconfiado de que por aqui, continua tudo na mesma. Como se hoje igual a ontem.
Seria fácil. Muito fácil. Seria fácil chegar aqui, pegar em todas as palavras que pudessem retractar o que me vai na alma e despejá-las, umas atrás da outras, num desfile de dor e frustração. Seria muito fácil visto que o aperto que sinto no peito não me deixa margem para dúvidas e deste modo, faria o texto em três tempos, sem grandes dificuldades. Bastava decalcar o que cá vai dentro e estaria pronto.
Seria fácil. Mas sempre desconfiei do fácil. Por norma não acredito em facilidades (falta de hábito, talvez), muito menos gosto de fazer leituras superficiais visto que tendem a ser incompletas, imperfeitas e precipitadas. Por isso aqui estou, com toda a calma que consigo ter, a deixar que água correr o seu curso, deixando o peito doer doer doer, esperando que a lucidez faça o seu papel.
Enquanto espero, tento juntar as peças de mim mesmo. Peças que se espalham, teimosas. Peças que se escondem, que me fogem sem que eu as consiga agarrar. Tento perceber, a cada dia que passa, que peças faltam, porque faltam. Tento perceber-me, ler-me a fundo, sem pressa. Tento evitar precipitar-me para não ter de chegar aqui um dia e, com a maior das facilidades, fazer um texto em três tempos, com todas as palavras que pudessem retractar o que me vai na alma. Isso, seria muito fácil.