"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
"Escrevo-me. Escrevo o que existo, onde sinto, todos os lugares onde sinto. E o que sinto é o que existo e o que sou. Escrevo-me nas palavras mais ridiculas...e nas palavras mais belas... Transformo-me todo em palavras." - José Luís Peixoto
Lá fora o dia escurece ameaçador. Parece querer dizer algo sob a forma de nuvens, sob a forma de chuva. As lágrimas do mundo como gosto de lhe chamar. A chuva encanta-me. Da mesma maneira que o choro me encanta. Não que adore chorar. Não, nada disso. Mas há uma verdade profunda que emana da cada lágrima. De cada soluço. Trata-se do sentimento em estado bruto, sem filtros, violento, brutal, feroz. É o sentir que vem de dentro. Da alma.
O choro pode ser feliz. Quantas vezes não aconteceu colorir uma grande alegria de lágrimas salgadas, acompanhadas daquele abraço que é mais abraço do que todos os abraço. Encantam-me os abraços. Aqueles onde dois corpos se fundem num só, numa partilha infinita de um sentimento comum. Vale mais um abraço profundo do que mil palavras ditas, prometidas. No abraço também a verdade vem ao de cimo. A verdade sentida. A verdade abraçada.
Julgo que no fundo, sou uma pessoa fascinada pelos afectos. É essa a essência da minha vida, da minha existência. É esse o motor que me move, que me sorri. É essa a principal riqueza que ambiciono. Que tenho. Que preservo. Que alimento. Um tesouro que nunca me deixará, nem nos tempos da eternidade. Sem os afectos, tudo se reduz a uma triste existência à base de coisas. Coisas que erradamente julgamos nossas. Nada é nosso. É isto que sinto.
É provavelmente uma teoria meio bacoca. Admito que sim. Mas várias vezes dou comigo a pensar que a distancia nos ajuda a ver melhor. Logicamente que não me estou a referir a nenhum teste oftalmológico, onde certamente fica mais difícil ver à medida que nos afastamos da letras que de depois, letrinhas e depois letrinhazinhas até que pontinhos indefinidos e finalmente, nada. O branco. As lentes. Assim está melhor? E assim? Vê melhor?
Na verdade, vejo melhor ao longe. Nem preciso de lentes nem de médico nenhum para saber que isto que digo é um facto. Quando muito em cima ou mesmo dentro de uma situação, está-se demasiado perto para ver com lucidez. É impossível já que se é parte da coisa, logo fica impossível observá-la, assimilá-la, contemplá-la. Discerni-la. E assim, toda a visão fica demasiado parcial para poder ser digna do seu próprio nome. Visão.
É aqui que entra a tal teoria bacoca que defendo. Chamo-lhe pomposamente a Teoria da Máquina de Lavar Roupa. Sim a minha profissão é a criatividade mas garanto, não enlouqueci. Passo a explicar. Quando se está dentro dela, da máquina, por mais voltas que se dê, está-se lá dentro e é para isso que vivemos. É tudo o que vemos. Somos parte do problema. Uma vez cá fora, ao longe fica mais fácil observá-la. À distancia, os contornos definem-se. As conclusões chegam. As certezas formam-se. Hoje, ao longe, tenho a certeza disto que digo.
Por hoje apetece-me simplesmente não existir. Não ter de ser eu. Eu não estou aqui, este não sou eu, é apenas uma sombra de mim próprio, uma representação. Eu não estou aqui, estou longe, bem longe. Estou longe e estou em parte nenhuma, mergulhado num vazio vazio de tão vazio. O absoluto nada de nada, tão cheio de nada, inundado de nada. Aqui onde me encontro, perco-me no meio de um nada opaco, brutal, esmagador.
Este que aqui está não sou eu. É alguém que em vez de mim, escreve estas palavras na tentativa de se parecer com o eu do costume. O eu dos pensamentos, o eu das ideias, o eu das músicas, o eu das paixões e desolações. O eu que vive vivendo tudo. O eu que vive em mim, que vive para viver que vive para a vida. O eu que eu gostava de ser todos os dias, mas que nem sempre consigo. Hoje esse eu, não se encontra.
Esse eu perdeu-se num labirinto de nada à procura do tudo. Parecia ali. Estava ali. Tão à vista. Tão perto. De repente, todo o nada do mundo chegou para me cercar, para me esmagar. Para me levar para tão longe que não vejo meio de regressar. Aqui está escuro. Não vejo nada a não ser nada que nada me vale porque de nada me serve. Serve apenas para me recordar que este de hoje, o destas palavras, não sou eu. Quem sabe amanhã. Quem sabe um dia. Quem sabe. Por hoje, nada sei. Por hoje apetece-me simplesmente não existir. Não ter de ser eu.
Completo-me quando me sorris. Aquele sorriso que conheci depois de tantos anos de sorrisos. Sorrisos e mais sorrisos. Mas afinal, havia um outro, secreto, exclusivo, que eu não conhecia, nem sequer imaginava. Julgava-o mesmo impossível ou pelo menos improvável. Gira esta palavra. Improvável. É sem dúvida nenhuma a mais improvável de todas as palavras. O não provável. Não previsível. Não espectável. Um sorriso resgatado da alma, feito só para sorrir um momento de pura perfeição.
Se existem os momento perfeitos, porque razão têm de existir todos os outros? Talvez os momentos perfeitos não tenham sido feitos em quantidades suficientes para serem distribuídos por toda a gente. E talvez por isso tenhamos de os repartir com alguém. A dois. E talvez ainda assim não seja possível fazê-lo todos os dias e todas as horas, porque mesmo assim, não chegam para todos os pares. E por isso, talvez não reste outra alternativa senão aproveitar o melhor possível quando esse raro momento chegar. Sempre que ele chegar.
Digo e repito, completo-me quando me sorris. Para mim, é um momento perfeito. Daqueles que procuro aproveitar, registando o melhor possível cada instante para depois recordar, sempre que a distância insiste em levar-me para longe. Nesses momentos, também eu sorrio. De alma. Sorrindo para dentro de mim próprio, sem que ninguém veja ou desconfie. Talvez apenas tu, que mesmo aí onde o meu olhar não consegue chegar, sabes e conheces na perfeição aquilo a que me refiro. Não sabes?
Pode o tempo suspender-se por instantes de eternidade? Pode a noite ser o dia dos dias? O sol dos sóis? O fogo dos fogos? A luz de todas as luzes? Pode um instante ser mais longo do que todos os anos, todas as vidas, todo o sempre? Pode uma visão ser mais perfeita do que todas as paisagens, todas a belezas ou encantos? Pode o real ser mais perfeito do que todos os sonhos? Por mais nítidos. Por mais divinos. Por mais sonhados que sejam?
Pode uma memória ser mais presente que o todos os agoras que se sucedem e sucedem e sucedem e sucedem sem parar? Para todo o sempre? Pode uma memória ser mais viva do que o pulsar da terra, que o cair da chuva, que o rebentar de uma onda, que um vulcão que grita anos e anos de silêncio? Pode uma memória ser o tempo tornado eterno, suspenso de si próprio? Passando a correr, parado, mas a correr, embora parado e a correr e parado. Sempre a correr parado sobre si, sobre o mundo.
Pode uma hora ter mais vida do que vidas e vidas cheias de horas e horas de nada de nada? Pode um olhar dizer mais do que as palavras, todas as palavras, todas frases de todas da línguas de todas as pessoas de todo o mundo? Pode a vida encher-se de eternidades sucessivas? Ou estará condenada ao tempo que é o tempo de todos, que passa por passar, que existe por existir? Que faz viver por viver. Pode uma resposta responder a todas as perguntas? Ou podem todas as respostas responder a uma só pergunta? Pode a vida encher-se de eternidades sucessivas? Só o tempo o dirá.
Talvez a magia dos livros sejam aquelas frases disfarçadas de comuns, parecidas às outras normais que se limitam a dizer, a significar e pronto. Frases que uma vez descobertas nos fazem parar, reler, sublinhar. Frases que nos desviam o olhar para parte nenhuma e que nos levam o pensamento para os limites do infinito. Fazem reflectir, analisar, sorrir. Fazem crescer. Fazem sentido. O sentido da vida.
Talvez a magia dos livros seja essa missão de descoberta de frases eternas. Frases enormes. Tão únicas, perdidas no meio de milhares. Talvez sejamos nós o aventureiro, o explorador, o verdadeiro personagem em busca de tesouros escondidos em oceanos de palavras. Sem mapas, nem pistas. Apenas munidos de uma vontade férrea de ser maior, de crescer com as palavras certas genialmente encaixadas.
Talvez a magia dos livros seja a partilha desses tesouros e por isso, aqui deixo algumas das minhas mais recentes descobertas: - Não se podem construir dias novos sobre manhãs que se recordam. - Não há forma de explicar tudo o que se diz quando se diz sofrer. - Talvez o sofrimento seja lançado às multidões em punhados e talvez o grosso caia em cima de uns e pouco ou nada em cima de outros. - Sei o que os homens fazem e as razões imediatas do que fazem, mas saber isso é saber o que está à vista, é não saber nada. - Talvez os homens sejam pedaços de caos sobre a desordem que encerram, e talvez seja isso que os explique.
Hoje é dia de reunião. Não, nada de trabalho. Aqui, o quotidiano fica à porta, os problemas não recebem convite. Por mais que se esforcem, são amavelmente deixados à porta. Se fizerem muita questão de entrar, rapidamente são arrastados por um verdadeiro tsunami de palermices e acabam por ir embora naturalmente, sem que ninguém dê por eles. Nestas reuniões, vale tudo menos falar, agir ou pensar a sério.
Imaginem um brasileiro com ar de louco mas que na verdade é ainda muito mais louco do que parece. Imaginem um mergulhador mascarado de publicitário com a mania que é campeão em jogos de computador. Imaginem um guitarrista de uma banda rock, acabado de sair do Matrix qual Keanu Reeves mas armado em menino de coro do género eu não parto um prato. Imaginem um escritor de livros, publicitário, inventor de ideias geniais como por exemplo, ser casado, ser pai e imagine-se, ser muito feliz!
São estes ilustres senhores que, juntamente comigo – o tipo normal, se vão reunir hoje mesmo com o intuito de dizer ainda mais disparates do que na última vez. A tarefa é de facto titânica porque se tratam, na minha opinião, dos maiores especialistas mundiais nesta matéria. Em equipa, diria mesmo, somos imbatíveis. Por isso, sempre que sai uma convocatória, faço todos os possíveis para marcar presença visto que com esta gente, num só jantar, consigo coleccionar risos e sorrisos para pelo menos um mês. Pelo menos até à próxima reunião.
Muito sinceramente não consigo habituar-me à ideia de que não estás bem. De que possas passar os teus dias incomodado por essa doença parva que teima em não te largar. Logo agora, tantos anos depois de teres nascido. Não faz sentido ter-te escolhido. Não faz sequer sentido que escolha quem quer que seja. Não faz sequer sentido que exista. Não consigo entender o porquê de tamanha barbaridade.
Não consigo habituar-me à ideia de que possas não estar no teu quintal, às voltas com os teus cultivos. Cavando aqui, colhendo ali. Não consigo habituar-me à ideia de que possas não estar a preparar ou o almoço ou o jantar. Temperando, provando. Criando. Não consigo habituar-me à ideia de que possas não estar a dormir a sesta da tarde abraçado à tua almofada com a Ilda a perguntar-te porque é que tens de estar sempre abraçado à almofada.
Esse sorriso malandro sempre me habituou a que tudo esteja bem. Esses olhos azul mar sempre me tranquilizaram e por isso não consigo habituar-me à ideia dos dias do sofrimento. Os dias da angustia. Os dias da incerteza. Gostava muito que amanhã o sol nascesse brilhante de novo no teu dia e porque será quarta feira, irias ao mercado em busca dos melhores preços. Voltarias pelo almoço. E tudo estaria normal. E tudo isto seria passado. E tudo o resto seria futuro. O futuro que sempre julguei infinito.
Já o disse e volto a repetir: por vezes lembra-me um grande palco, cheio de luzes, actores. O cenário, perfeito. Dias e dias em cena. Todos os dias, as mesmas cenas. Os mesmos actores. As mesmas luzes. No mesmo palco. Uma temporada inteira levada a cena, com o público a dizer presente, aclamando, pedindo mais, sonhando ao mesmo tempo com uma nova representação, quiçá melhor ainda, mais empolgante, cheia de emoção e acção.
No fim, depois das palmas e mais palmas. Depois do bravo, do bis e mais palmas agora de pé, depois de tudo isto, o palco esvazia-se. As luzes apagam-se. O público segue em direcção a casa, comentando, recordando. Os actores descem aos camarins, despem-se das suas personagens voltando a si mesmos, às suas vidas feitas de dias seguidos, todos iguais, longe do palco do faz de conta. Longe do público das palmas, perto do resto do público.
Por vezes faz-me lembrar tudo isto o fim do Verão. Como uma grande peça que termina a sua temporada. As luzes já se apagaram. Os actores já saíram de cena. O público já rumou aos seus lares, às suas vidas, com as suas recordações. Ficou o cenário, agora vazio. Fiquei eu, como que uma testemunha disto tudo, como o guardião deste teatro que para o ano o voltará a ser. Quem sabe com um elenco ainda melhor e com mais público ainda. Por agora, há uma vida para viver. Longe das luzes da ribalta.
Foi precisamente há um ano. Nem mais, nem menos. Um ano exacto neste dia, nestas vinte e quatro horas. Estas vinte e quatro horas há precisamente um ano. Vinte e quatro horas que nasceram como as outras, cheias de sono, cheias de manhã, cheias de brisa fresca, cheias de domingo. Cheias de rotina. Da suposta rotina que nesse dia deixaria de ser. Para sempre.
Foi precisamente há um ano que julguei não ser possível acontecer tal coisa. O mundo inteiro a desabar nos meus ombros, sem avisar. Assim de repente. De um momento para o outro. O peso de toda a dor existente ao cima desta terra. A queda num abismo escuro, sem fim à vista, infinito. O fim da eternidade jurada. O sofrimento tornado pessoa, tornado eu. Todo o sofrimento.
Foi precisamente há um ano que, sem saber, renasci. Que acordei para a vida e lhe disse, agora, somos nós. Só nós. Eu e tu. Mais ninguém. Vais ser minha. Vou fazer de ti o que quiser. E contigo, vou vencer. Contigo vou percorrer os caminhos que quiser, quando quiser, como quiser. Não vou olhar para o lado, muito menos para trás. Contigo, vou em frente, vou lutar, vou ser feliz. Definitivamente, feliz.