Mar de encantamento.
Às tantas foram-se as ideias todas e eu agora parecido a uma corrente de ar, feito movimento fugitivo de coisa nenhuma, frio, desagradável, sentado em frente das evidências sem ser capaz de lhes ler o óbvio, procurando-lhes o outro lado, apenas o outro lado, na esperança penso que da essência, sim da essência, desse género de segredo escondido, mapa revelador de cada coisa, cada sombra de gente a mover-se por entre espaços ainda desocupados, sem tempo, fugindo, correndo sem rumo rumo a suas casas, sem direcção, à deriva pelas correntes sempre fortes demais para serem contrariadas, as correntes que às tantas me prendem as ideias todas e eu agora aqui, em esforço, lembrando tempos idos, memórias que se ergueram como explosões e das explosões lembro as pessoas, lembro aquelas terras em que ninguém manda, aquelas terras feitas no nada, nascidas da fúria divina, verdes como o paraíso, escuras como o inferno, contrastes, ironias, aceitação, vejo aceitação nos rostos das pessoas, vejo esse saber das regras universais, essa consciência de que o mundo só o muda o mundo, mais ninguém, e daí a aceitação, supremo gesto de sabedoria, quais anciões jogadores de sueca, olhando resignados as cartas que a sorte lhes escolheu, fazendo delas o seu jogo de vitórias, o seu jogo que conquistas, eu a estudar-lhes cada passo, vigiado por um mar que nunca dorme, uma sentinela incansável, sempre disposto a lembrar-lhes o fim das ilusões, tão cruel quanto belo, omnipresente, trazendo aqueles a que chamei os sonhadores das estrelas cadentes, que ali se encontram em datas impossíveis, celebrando o efémero, brindando a um até sempre que ali tudo significa, antes de partirem tal como eu parti, eles rumo a novos portos de abrigo, eu sobrevoando o pôr do sol, olhos nos olhos com a perfeição, deslumbrado e ao mesmo tempo preocupado, preocupado que as ideias me fujam, escorregadias, na hora de descrever o outro lado de tudo o que vi, nos Açores.